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energia nuclear no brasil passivos da energia atômica
2010-11-03 | Tatianaf

Localizada a 750 quilômetros de Salvador (BA), Caetité vive as consequências da exploração de uma mina de urânio na cidade que tem rendido problemas como o aumento do custo de vida e, ainda, contaminação da água da qual 46 mil pessoas utilizam diariamente. "Entre os problemas principais estão o aumento da incidência de câncer, o potencial de drenagem ácida no sítio da mina e a preocupação com o futuro, pela convivência com uma indústria que já rendeu para Caetité o estigma de região radioativa e futuro depósito de lixo atômico, afugentado turistas e estudantes", explica Zoraide Vilas Boas, presidente da Associação Movimento Paulo Jackson, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.

Zoraide nos conta sobre os incidentes que já ocorreram na mina, como estes são apresentados à comunidade e que tipo de problemas a médio e longo prazos a convivência com a mina estão trazendo para toda a população da cidade. "A população passou a temer mais os efeitos da mineração na saúde, a partir de 2005, quando as Indústrias Nucleares do Brasil - INB admitiram que não faziam o monitoramento da saúde dos trabalhadores e dos moradores do entorno da mina, descumprindo a condicionante do licenciamento ambiental", conta ela.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a situação da mina de urânio localizado na cidade de Caetité (BA)?

Zoraide Vilas Boas – Não saberia dizer, com precisão, a situação da mina, porque a marca registrada do setor nuclear – de falta de transparência, de diálogo, de informação – não é diferente na Bahia, onde as Indústrias Nucleares do Brasil (INB) exploram urânio há mais de dez anos. Subordinada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, a INB é uma sociedade de economia mista que atua com produtos e serviços relacionados ao ciclo do combustível nuclear. É controlada pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), proprietária e, ao mesmo tempo, fiscal das principais instalações nucleares e radioativas do país. Assim, os poderes públicos, a imprensa, a sociedade não têm livre acesso ao que se passa na Unidade de Concentrado de Urânio (URA), que fica em Caetité, no sudoeste baiano.

O que sabemos é que a URA não consegue se enquadrar nas normas de radioproteção e segurança, nacionais e internacionais; que foi acusada de imperícia e negligência pela própria CNEN, que já parou sua produção inúmeras vezes para consertar erros do projeto de engenharia e que acumula várias queixas trabalhistas na Justiça, sendo réu em duas Ações Civis Públicas, propostas pelos Ministérios Públicos Estadual (MPE) e Federal (MPF), em 2009. Só em 2010 a empresa barrou duas visitas às suas instalações: uma da deputada do PV alemão, Ute Koczy, porta-voz do partido para assuntos relacionados à política de desenvolvimento. Em agosto, ela veio conhecer detalhes e efeitos socioambientais do Programa Nuclear Brasileiro e das representantes da Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente, da Plataforma Dhesca Brasil (Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais). E também barraram a visita da socióloga Marijane Lisboa, professora da USP, e da antropóloga Cecilia Mello, que tentaram conhecer a mineração, em julho passado.

A mina fica no distrito de Maniaçu, sertão da Bahia, entre os municípios de Lagoa Real e Caetité, a 750 quilômetros de Salvador, capital do estado. Caetité tem mais de 46 mil habitantes, sendo 40% na zona rural. Lagoa Real tem cerca de 14 mil, com 80% na zona rural. Ali, o urânio é extraído do minério, purificado e concentrado em forma de sal amarelo, que vai para o Canadá, onde é convertido em gás, seguindo para enriquecimento em países europeus e volta à Fábrica de Rezende (RJ), onde se conclui a geração do combustível para as usinas Angra I e II (RJ).

Apesar da tentativa de impor que o setor nuclear seja estratégico, de segurança nacional, o que justificaria sigilo total sobre suas atividades, os movimentos e entidades sociais e populares têm conseguido reagir contra a manipulação da informação pelo setor, a omissão dos poderes públicos fiscalizadores e a falta de controle social sobre a URA. Hoje, por exemplo, embora não se tenha conhecimento de comunicado oficial aos órgãos públicos, ou à sociedade, sabemos que a produção está parada desde julho passado.

Sindicalistas revelaram que isto aconteceu pela “inoperância e incompetência” dos gestores, responsáveis por “uma série de barbeiragens administrativas, onde o que se viu foi uma completa falta de entendimento entre a CNEN e a INB. Ninguém cobrava de ninguém a responsabilidade e a situação se agravou ao ponto de gerar um prejuízo imenso aos cofres públicos”. Falaram ainda que isto é parte de um plano “ardiloso e vil” para privatizar a empresa, mas não informaram os motivos da paralisação. Segundo comentários extraoficiais, um vazamento de solvente químico (ácido sulfúrico e outros) para o solo, de proporção ainda desconhecida, levou a paralisação para reconstruir a unidade de estocagem e regeneração de solventes, que era tecnicamente inadequada para o serviço. As comunidades estão preocupadas, pois há cerca de dois anos fotografaram, perto da área industrial, um minadouro estranho, de uma água barrenta e espumosa, fato até hoje não investigado, ao que se sabe. Fala-se também que as bacias de armazenagem dos rejeitos atômicos estão abarrotadas e a manta que fica no pátio de lixiviação, onde o minério é submetido à solução de ácido sulfúrico para a retirada do urânio, estaria furada, provocando contínuos vazamentos.

IHU On-Line – E quais foram os principais problemas que essa mina trouxe para a população?

Zoraide Vilas Boas – Inicialmente, Caetité sentiu os efeitos sobre a economia, com a subida de preços de bens de consumo, uso e serviços, de imóveis e aluguel, quando o custo de vida praticamente quadruplicou. Na sequência da degradação psicossocial e ambiental, vieram o medo, a incerteza pela convivência com uma atividade de alto risco para os trabalhadores, a população e o meio ambiente.

Entre os problemas principais estão a escassez e a contaminação da água, o aumento da incidência de câncer, o potencial de drenagem ácida no sítio da mina e a preocupação com o futuro, pela convivência com uma indústria que já rendeu para Caetité o estigma de região radioativa e futuro depósito de lixo atômico, afugentado turistas e estudantes. O comércio se queixa de prejuízos decorrentes do preconceito contra a mineração atômica, mas quem mais sofre são as comunidades que vivem num raio de 20 quilômetros, definido como área de influência da URA, perto de mil famílias de baixa escolaridade, lavradores, pequenos proprietários rurais, que são as mais desassistidas pelo Estado. Mas também comunidades rurais dos municípios de Lagoa Real e Livramento são afetadas pelos malefícios da mina.

A questão do saneamento ambiental em Maniaçu é gravíssima. Não existe água para consumo básico, nem para comer. Além de comunidades rurais estarem consumindo água contaminada, o aquífero está rebaixando e os poços estão ressecando rapidamente. Estes problemas já eram previstos no Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima), que indicou agravos à saúde da população, alteração da qualidade do ar, poluição radioativa e contaminação das águas subterrâneas, do solo e da vegetação. A região tem sofrido com a violação de direitos humanos, como o direito à segurança no meio ambiente do trabalho, à saúde, à informação.

Lavradores foram induzidos a autorizar o uso gratuito, por tempo indeterminado, das águas subterrâneas de suas propriedades, passando para a URA o controle da água, oriunda de poços artesianos. Dezenas de poços foram abertos e, em 2007, uma seca prolongada castigou mais de cem famílias rurais, que perderam lavouras e ficaram dependentes de água fornecida pela INB. Hoje temem o impacto da liberação de radônio na atmosfera e da poeira gerada pelas explosões atômicas e têm seus produtos agropecuários recusados em feiras livres. São as maiores vítimas do descaso, da omissão, da negligência dos poderes públicos locais, estaduais e federais.

IHU On-Line – Que tipo de incidentes já ocorreram na mina?

Zoraide Vilas Boas – Em dez anos de funcionamento, há registro de mais de 12 eventos, entre acidentes e incidentes nas instalações, no processo produtivo ou com operários, todos classificados pela empresa como rotina operacional, independente da sua dimensão. Muitos desses problemas, que envolvem também o transporte do urânio até o porto de Salvador, estão detalhados no Relatório sobre Fiscalização e Segurança Nuclear, da Câmara dos Deputados, que mostra os riscos de acidentes nucleares e radiológicos no Brasil devido à fragilidade da fiscalização e à falta de estrutura do sistema de radioproteção – o Sipron. O relatório denuncia a omissão e a conivência do Ibama, para com a mineração em Caetité, que é de alto risco para a população e o meio ambiente.

O primeiro e grave acidente ocorreu em abril de 2000, poucos meses após o início oficial da operação, com o rompimento das mantas de isolamento das piscinas, que liberou para o solo cerca de 67 quilos do concentrado de urânio. A INB e a CNEN tentaram esconder o fato a todo custo, chegando a sustentar uma versão de sabotagem. Só três anos depois admitiram o evento, afirmando que os danos foram insignificantes. Em 2004, a bacia de retenção de particulados da cava da mina transbordou sete vezes, liberando líquido, com concentração de urânio-238, tório-232 e rádio-226 para o solo. Os fiscais da CNEN recomendaram a suspensão da mineração, pelo risco de desabamento e contaminação do lençol freático, e a não renovação da Autorização de Operação. Mas a CNEN ignorou o parecer dos seus fiscais.

Em junho de 2008, ocorreu novo transbordamento de licor de urânio, só confirmado três meses depois pelo Ibama. No ano passado, mesmo sem autorização do Ibama, e sem licença de ampliação da planta para fazer extração subterrânea, a INB anunciou a conclusão de um túnel de 500 metros na rocha para começar a mineração subterrânea. De outubro a dezembro de 2009 ocorreram pelo menos mais dois vazamentos, numa freqüência de eventos que aumenta a desconfiança sobre as competências científica e técnica da empresa para lidar com a atividade atômica.

IHU On-Line – Quais são as principais reivindicações de quem vive na cidade?

Zoraide Vilas Boas – As populações da região reivindicam uma urgente auditoria no complexo INB, por um grupo técnico multidisciplinar, independente, com representantes da comunidade, e acompanhamento dos Ministérios Públicos Federal e Estadual; a implantação de um sistema de vigilância epidemiológica, toxicológica, para identificação de doenças decorrentes de radiações ionizantes e a instalação, no SUS, de um núcleo para a prevenção e tratamento de doenças ocupacionais. Reivindicam uma investigação socioambiental e epidemiológica, independente e transparente, sobre os riscos de contaminação humana e do meio ambiente por urânio e outros elementos químicos associados à exploração desse minério.

Desde 2008, com o agravamento dos conflitos pelo uso da água, escassa no semiárido e consumida em larga escala pela INB, as comunidades reivindicam a aplicação da Lei de Recursos Hídricos, segundo a qual, em situação de carência, a prioridade do consumo é para o abastecimento humano e animal. A partir de 2009 lutam pelo cumprimento da liminar concedida pelo juiz de direito de Caetité, em Ação Civil Pública proposta pelo MPE, que determina ao governo do estado, INB, prefeituras de Caetité e Lagoa Real a adoção de providências urgentes para garantir a segurança alimentar e de saúde das populações da região, ainda não cumpridas integralmente pelos réus.

Reivindicam também a imediata suspensão das atividades da INB, até ser garantida a proteção dos trabalhadores e da população, como foi requerido pelo PPF, em Ação Civil Pública. O MPF propôs ainda que a União e a CNEN custeiem a realização da auditoria independente, solicitada pela sociedade desde o acidente de 2000, e que o IBAMA suspenda a licença ambiental existente e não conceda outras até serem sanadas todas as irregularidades atribuídas à mineração, em especial a separação entre as funções hoje acumuladas pela CNEN, de órgão regulador e fiscalizador de si mesmo.

IHU On-Line – Que tipo de resíduos e lixo essa usina de Caetité produz?

Zoraide Vilas Boas – Para nós, o resíduos líquidos, sólidos, gasosos (este de dispersão incontrolável), “bota-fora”, rejeitos, estéril fazem parte de uma só, desafiante e perigosa incógnita, não solucionada por nenhum pais do mundo: o lixo atômico, gerado em atividades minero-radioativas, cujos efeitos duram pelo menos 50 mil anos, e que se avoluma no mundo, como uma ameaça para o futuro da humanidade.

O urânio sai da Bahia para alimentar as usinas de Angra dos Reis, deixando em Caetité os custos do uso dessa tecnologia, cara e perigosa. O lixo é produzido em grande quantidade, devido à baixa concentração do urânio, mas não se sabe quantas toneladas de rejeitos sólidos já existem. Segundo a INB, a produção de uma só tonelada de urânio está resultando em três toneladas de estéril. O lixo fica estocado em tonéis, abertos, corroídos, expostos a chuvas fortes, contribuindo para a contaminação do solo e das águas superficiais e subterrâneas e estaria sendo enterrado na URA. O futuro do lixo atômico em Caetité é uma grande interrogação e preocupação. Ao que tudo indica, pela omissão da prefeitura municipal e pela improvisação que predomina no setor, será deixado de herança para o município administrar quando a reserva do minério acabar.

IHU On-Line – O meio ambiente de Caetité mudou muito em função da usina de urânio?

Zoraide Vilas Boas – Certamente que o meio ambiente na região mudou muito e para pior. Os malefícios não foram ainda devidamente quantificados porque o setor nuclear, além de conseguir que a INB funcionasse desrespeitando os Princípios da Precaução e Prevenção, exigidos pela legislação ambiental, e as convenções internacionais de segurança nuclear, assistiu os poderes públicos estaduais, federais e municipais atravessarem mais de uma década sem fazer uma avaliação da qualidade do ar, da saúde dos trabalhadores e da população, dos produtos agropecuários, do solo. Só a água passou a ser monitorada, mesmo assim de forma irregular, pelo órgão gestor de águas do estado, o Inga.

Depois da primeira análise da qualidade da água no entorno da mineradora, que confirmou a contaminação de três poços ao redor da mina, denunciada, no final de 2008, pelo Greenpeace, o Inga fez mais três coletas, confirmando teor de radiação acima dos índices permitidos pela OMS, Conama e portaria de potabilidade da água do Ministério da Saúde. Por isto, determinou a interdição de 11 pontos, nove usados para consumo humano e animal e dois de uso industrial pela INB. Mas as comunidades seguem consumindo a água contaminada, pois o fornecimento de água potável pela estado, prefeituras e INB, determinado pela Justiça, não é suficiente para atender as necessidades das famílias afetadas.

IHU On-Line – Existe uma estimativa sobre a quantidade de casos de câncer que vem aparecendo na região de Caetité depois da exploração do urânio?

Zoraide Vilas Boas – Como falamos em relação à agricultura, ao saneamento ambiental, na assistência médico-social é o mesmo descaso. Não existe um acompanhamento transparente e permanente por parte dos poderes públicos competentes, nem pela INB, que possa revelar, com precisão, a evolução da saúde humana na região.

A população passou a temer mais os efeitos da mineração na saúde, a partir de 2005, quando a INB admitiu que não fazia o monitoramento da saúde dos trabalhadores e dos moradores do entorno da mina, descumprindo a condicionante do licenciamento ambiental. A assistência à saúde sempre foi precária na região, que não dispõe de um centro de diagnóstico de câncer, decorrente de exposição a radiações ionizantes, e novos casos são registrados, inclusive entre os trabalhadores.

Observações pessoais revelam um crescente índice de câncer e depoimentos de ex-empregados relatam contaminação por contato direto com o urânio. Em diversas inspeções na URA, o Centro de Saúde do Trabalhador da Secretaria Estadual de Saúde (SESAB) registrou irregularidades na avaliação de segurança e medicina do trabalho. Segundo a SESAB, as neoplasias apresentam tendência crescente entre os grupos causadores de morte, sendo a segunda causa de óbitos na região, desde 1999, período do início da exploração. O alto índice de causas de morte não identificadas, mais de 40%, dificultam uma estatística mais próxima da realidade, enquanto a INB, claro, nega qualquer nexo entre o crescente índice de câncer e sua atividade.

Sabemos que a mineração eleva o potencial de exposição à radiação, especialmente dos trabalhadores e das comunidades que vivem no entorno da mina. Contudo, o setor nuclear insiste que há um limite para a exposição à radiação, incapaz de afetar a saúde humana, minimizando os riscos da URA. Mas especialistas no ramo consideram que qualquer dose de radiação, por menor que seja, produz efeito colateral no ser humano. O relatório de 2005, da Academia Nacional de Ciências, sobre os Riscos a Saúde por Exposição a Baixas Doses de Radiação Ionizante, afirma que não existe limite seguro para radiação. Segundo a ciência médica, todos os níveis de radiação causam câncer, mesmo a exposição a doses muito baixas, como o setor nuclear classifica a radiação em Caetité, onde a saúde da população não recebe a atenção devida pelo poder público, enquanto as comunidades são obrigadas a deixar seus afazeres para ir à luta a fim de tentar assegurar seu direito à saúde, à informação, à justiça ambiental, à vida!

(IHU-Unisinos, 02/11/2010)


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