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poluição em rios gestão dos recursos hídricos
2010-10-29 | Tatianaf

Sempre tive paixão pelos rios. Cada fase de minha vida foi marcada por um rio, do qual guardo vívida lembrança.

Na infância, foi o rio das Velhas. Para ele fiz alguns poemas. Vou mostrar um deles, nesse Dia de Ação dos Blogs dedicado à água. Na pré-adolescência, foi o São Francisco. Na juventude, o rio Descoberto, de Goiás. Na maturidade, os rios do Pantanal e da Amazônia.

Sobre o rio das Velhas, minha lembrança mais viva era das mulheres dos caboclos sertanejos lavando suas roupas brancas nas águas límpidas. Intuía o destino do rio, embora não tivesse a menor noção de que, no futuro, aquelas águas limpas se tornariam tóxicas. Dessa intuição, o poema:

Lavadeiras de Minas

Lavadeiras do Rio das Velhas,

pernas fortes, coração grande,

vida pequena.

Mulheres de Minas,

Campesinas da madrugada,

saias brancas enfunadas.

Lavadeiras mineiras,

vendo o rio se acabar.

O que passarão a lavar?

(Brasília, 1966)

Hoje o rio das Velhas é um curso d’água quase imprestável, quase sem vida. Objeto da ação heróica do Apolo Heringer Lisboa, professor da escola de medicina da UFMG. Ação que hoje ficou, como ele sempre quis, maior que ele, no sólido Projeto Manuelzão. Apolo transformou sua paixão por rios em ação militante e blog.

A meta para o rio das Velhas é simples e quase impossível: navegar, pescar e nadar no rio das Velhas, em sua passagem pela região metropolitana de Belo Horizonte, a mais poluída da bacia do Velhas, que vai da foz do rio Itabirito até o ribeirão Jequitibá.

A viagem inesquecível da minha pré-adolescência foi com meu bisavô Juca, meu pai Fernando e meu tio Renato, em um jipe Willys, do meu Curvelo natal até Três Marias, para ver a piracema no São Francisco. Meio aventura, meio deslumbramento, cortando estradas de chão, pelo poeirão vermelho do sertão cerrado, a viagem ficou indelével em minha memória. E toda vez que vejo o São Francisco definhando, assaltado por esgotos, mau uso e uma transposição de águas que já não tem, me lembro do espanto ao vê-lo no entardecer, grandioso, caudaloso, parecendo imortal. Agora, pegam seu corpo envelhecido e maltratado e querem que ele dê mais de suas águas. Como uma doação de sangue feita forçosamente por uma pessoa em aguda anemia. Em breve, não chegará ao mar. Hoje, perdeu as forças e o mar já o invade por quilômetros. Quando era forte e impoluto, avançava sobre o mar, adoçando suas águas por muitas milhas náuticas. A ponto de permitir que navegantes se afastando da costa ainda bebessem delas.

O rio da minha juventude foi o Descoberto, na divisa de Brasília com Goiás, dele vem mais da metade da água consumida por Brasília. Ele nasce no alto dos córregos Barracão e Capão da Onça, em área que hoje pertence a Brazlândia. Já no início da sua caminhada, começa a sofrer o impacto da ocupação desordenada e da agricultura predatória. Mais abaixo, forma o lago da barragem que abastece o DF, uma área precariamente protegida por uma APA. Saindo da APA, é um desastre só. Como meu rio das Velhas, ele se torna um fluxo tóxico, contaminado pelos efluentes agrotóxicos e pelos esgotos do crescimento urbano sem saneamento e sem regra, e vai contaminar o rio Corumbá.

Os rios do Pantanal e da Amazônia, só pude conhecer já bem adulto. Aí já não tinha a ingenuidade da juventude. Ao descer deslumbrado o rio Negro, no Pantanal, uma região ainda bastante preservada por ser de mais difícil acesso, com uma profusão impressionante de aves, mamíferos, répteis, sabia que era frágil e que, como todas as águas do Brasil, está ameaçado.

O outro rio Negro, no Amazonas, uma paixão particular, à qual retorno sempre que posso, não deixa ilusões. Já no porto de Manaus se vê que ninguém tem respeito algum por aquelas águas. Rio acima, encontra-se uma das maravilhas do Brasil, as Anavilhanas. Mas aquele belíssimo labirinto de ilhas é hoje uma rota-esconderijo para traficantes que descem vindos da fronteira na região da Cabeça de Cachorro e vão corrompendo ribeirinhos, principalmente jovens.

Não, as águas do Brasil não vão bem. Estão desprotegidas e atacadas de todos os lados. Eu vi a sanha com que os fazendeiros do entorno querem assaltar o parque Grande Sertão: Veredas, que começa em Minas, na cidade de Chapada Gaúcha, e se derrama por Goiás, até a Bahia. Ele protege duas riquezas. Parte do trajeto percorrido por Riobaldo e Diadorim na estória de Guimarães Rosa. E o Cerrado e suas águas. Cerrado é manancial, mas a maioria do Brasil o vê como mato sem importância. Cerrado é vida. Basta ver o que está acontecendo nas fazendas de soja no entorno do parque, onde não se deixou uma árvore de pé. Sem vegetação e mata ciliar, foram-se as águas, acabaram-se as veredas. Está virando deserto. Por isso querem as águas do Cerrado. Para entender o que digo, é preciso caminhar por uma vereda, banhar-se nas águas limpas de um Caninanha, que é preto, ou de um Preto, que é quase translúcido. Ver para crer, a simbiose entre sertão, vereda e a água da vida.

O Brasil acha que suas águas são inesgotáveis e elas não são. Recentemente aprendeu a se orgulhar do Aquífero Guarani, como um dos maiores do mundo, mas não está nem aí para os perigos que ele corre. Estamos usando suas águas a um ritmo muito superior à taxa de reposição. Suas águas já estão muito poluídas em vários pontos.

Os rios da Amazônia são hoje vistos como potencial hidrelétrico. Não são. Eles são parte da vida da floresta e seus povos e valem mais dessa forma, para nós, do que alimentando projetos duvidosos como de Santo Antonio, Jirau e Belo Monte. Temos muita biomassa, muito ar e muito sol, para acharmos que só nossas águas podem ser combustível. E hidrelétricas em rios sedimentosos, repletos de matéria orgânica não são limpas. Podem emitir mais que uma termelétrica fóssil.

Em cidades da região das serras da Capivara e das Confusões, áreas de extraordinária riqueza ecológica e pinturas rupestres que rivalizam com as francesas, lava-se calçadas com “água fóssil”, de um dos mais antigos aquíferos do Brasil, como me contou Niède Guidon, certa vez. Quando ela chegou na região, era tudo floresta. A caatinga veio depois. Vejam só o que ela conta: “Você tinha caatinga arbórea no planalto. Na planície era tudo floresta pau d´arco e aroeira. O rio Piauí corria, a cidade de São Raimundo tinha uns 10 lagos cheios de garça e pássaros. (…) Na Serra da Capivara só tinha um pequeno povoado com cerca de cento e poucas famílias. Eles iam lá fazer roça, não moravam ali. Na Serra das Confusões não tinha ninguém. Era completamente vazio, era tudo Mata Atlântica.”

Claro, nada é para sempre. Mas, com desperdício, sem cuidado e preservação, o que pode ir longe, acaba antes. É o caso de nossas águas. Não há rio importante do Brasil que não esteja ameaçado: São Francisco, Doce, Tocantins, Solimões, Negro, Amazonas, Paraguai e todos os outros, correm grande perigo. Achamos que nossas águas são, como nossas matas, uma riqueza. São mesmo. Achamos que podíamos usá-las como quiséssemos, porque estavam aí para isso. Não podíamos. Achamos que nossas águas não acabariam. Podem acabar sim. Como já acabaram os banhos, as lavadeiras, a pesca em tantos rios do Brasil.

O Brasil tem muita água e rios lindos. Mas como doem.

(Por Sérgio Abranches, Ecopolítica, Envolverde, 28/10/2010)


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