Desde o período colonial até os dias de hoje, o discurso em relação aos povos indígenas, no Brasil, ganha roupagens diferentes, muda de acordo com o momento histórico, mas trás uma carga de rejeição e preconceito. Ao comentar a declaração do atual Ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, sobre a dependência que as demarcações de terras geram aos índios, o coordenador do Conselho Indigenista Missionário – Cimi do Mato Grosso do Sul, Egon Heck, percebe a retomada do discurso proferido na ditadura militar pelo ex-Ministro do Interior do governo Médici, Rangel Reis: “Os povos indígenas não podem ser obstáculo ao desenvolvimento; têm de ser emancipados”. Por trás desse pensamento, explica, está a “possibilidade de os índios deixarem de serem índios (…) porque, como tal, se tornam dependentes, não se integram no sistema produtivo do país e, portanto, estão ameaçados”.
Em entrevista concedida, pessoalmente, à IHU On-Line, quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU apresentando uma palestra sobre a luta dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul, Heck chamou atenção para a demarcação das terras indígenas, que parece estar praticamente resolvida no país. Ele contestou os números divulgados pelo governo de que 95% das terras estariam demarcadas. “100% das terras do Mato Grosso do Sul precisam ser resolvidas”. E dispara: “As terras que estão com o processo concluído e que não têm invasões registradas, não chegam à metade, ou seja, são menos de 50%”.
Segundo Egon Heck, o governo Lula representava a esperança para os movimentos indígenas, mas chega ao fim de seu mandato deixando lamentações e um ar de melancolia. “Lula vai virar essa página da história sem ter criado o Conselho Nacional de Política Indigenista (…), o qual não foi adiante porque a composição do governo não tem interesse de que isso aconteça”.
Marina Silva, candidata do PV à presidência, embora tenha uma imagem positiva diante da comunidade kaiowá-guarani e um comprometimento pessoal pela causa indígena, não teria condições de assumir “um compromisso maior”, assegura. Com a experiência de quem está engajado nesta causa há mais de 30 anos, finaliza: “Não tenho expectativa de cenários otimistas. Pelo contrário, possivelmente se aprofundarão vieses políticos e econômicos que implicarão em maior impacto sob os povos indígenas”.
IHU On-Line – Em uma entrevista concedida ao jornal O Estado de S.Paulo, o Ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, ao comentar que 95% das terras indígenas já foram demarcadas, disse que a manutenção das reservas como espaços economicamente intocáveis gera dependência, corrupção e exploração predatória. Como o senhor interpreta essa declaração?
Egon Heck – É incrível como, na história, algumas posturas, dentro do modelo econômico vigente no país desde a época da Colônia até hoje, vão se repetindo. Ou seja, os povos indígenas, suas terras e direitos são considerados como bens que não podem permanecer sob o controle das populações indígenas. Apesar de a linguagem ser de superação da independência, infelizmente o teor da afirmação do Ministro da Justiça vai no sentido daquilo que parece, nos últimos anos, retornar com bastante ênfase: a necessidade de integrar economicamente os índios ao modelo de produção e de consumo do modelo neoliberal capitalista. Os índios, fora dessa lógica, são considerados incômodos e não podem permanecer com outra visão sobre os recursos naturais, a terra.
Além das remoções dos povos indígenas na década de 1970 para a construção de estradas e hidrelétricas, dizia-se que o “milagre brasileiro” significava, em termos de política indigenista, a emancipação dos índios. O Ministro do Interior do governo Médici, Rangel Reis, afirmava textualmente: “Os povos indígenas não podem ser obstáculo ao desenvolvimento; têm de ser emancipados”. Quando falava em emancipação, obviamente subentendia a emancipação das terras indígenas e a possibilidade de os índios deixarem de serem índios. Agora, evidentemente, essa ideia se atualiza, num momento histórico diferente, com um discurso diferente, mas, na prática, significa que os índios não podem continuar sendo índios porque, como tal, se tornam dependentes, não se integram no sistema produtivo do país e, portanto, estão ameaçados.
Lamento que estejamos retornando a esse tipo de discurso que, possivelmente, se transformará em planos indigenistas e políticas públicas. Temo que essa aceleração do crescimento, por meio do PAC, se dê em detrimento dos direitos a diferenças, do direito dos povos indígenas viverem conforme os seus modos de vida e produção e, sejam, compulsoriamente, integrados na lógica do atual sistema. Seria mais coerente, de acordo com a legislação nacional, dar aos povos indígenas condições de terem autonomia dentro dos seus territórios, buscarem desenvolver as suas práticas de economia e de relação com a sociedade de consumo da maneira que entendessem.
IHU On-Line – Está em votação no Congresso um novo Estatuto dos Povos Indígenas. Qual sua opinião em relação ao documento? Ele sinaliza avanços ou retrocessos para as comunidades indígenas?
Egon Heck – O Estatuto dos Povos Indígenas é um espaço de disputa de diferentes visões a respeito das comunidades e das perspectivas de futuro. Evidentemente, a ala mais conservadora, da direita, gostaria que no Estatuto simplesmente figurassem alguns itens que mantivessem os índios como seres exóticos e que eles fossem folclorizados e aproveitados pelo sistema; jamais pensaram neles enquanto povos e nacionalidades com relações distintas dentro de um Estado nacional e, ao mesmo tempo, articulados em termos dos direitos garantidos na Constituição.
O atual Congresso levou, estrategicamente, o movimento indígena e seus aliados a buscarem retardar o processo de aprovação porque o modelo a ser aprovado seria um mau estatuto. Sendo assim, é preferível que se mantenham os direitos da Constituição, os quais foram conquistados com muita garra pelo movimento indígena e que representam, de fato, um avanço sobre aquilo que vinha sendo apregoado como perspectiva para os povos indígenas.
Possivelmente, o Estatuto será posto na mesa diante de um novo Congresso, em princípio com alguns indicativos mais favoráveis aos povos indígenas e às questões sociais. Talvez esse seja o momento de aprová-lo, uma vez que o Estatuto de 1973 está defasado e contradito pela Constituição. O Estatuto seria o novo balizamento das relações do Estado nacional com os povos indígenas.
No atual Estatuto, a proposta que existe é boa no que se refere ao reconhecimento dos povos. Entretanto, é mais fragilizada em aspectos que dizem respeito ao aproveitamento dos recursos naturais: a mineração, hidrelétricas. Nesse aspecto, a composição de forças fez com que o Estatuto deixasse muitas brechas. É difícil ter controle sob os interesses multinacionais, sob a mineração, a instalação de grandes obras como hidrelétricas nas terras indígenas. Isso será, ainda, motivo de muita discussão. De qualquer modo, dificilmente se terá um parâmetro favorável aos povos indígenas; haverá negociações e também exceções de parte a parte, até que se chegue a um denominador que, espero, seja positivo ou menos negativo para os povos indígenas. Espero que o Estatuto possa se colocar dentro da perspectiva de ser um avanço na garantia dos direitos conquistados.
IHU On-Line – Qual é o sentimento das comunidades indígenas em relação à demarcação das terras? Que relação eles querem estabelecer com o Estado nacional? Na entrevista que mencionei anteriomente, o Ministro da Justiça inclusive disse que os índios se sentem num zoológico.
Egon Heck – A afirmação do Ministro é bastante ambígua e pode ser lida desde os mais ferrenhos direitistas dos governos militares, que têm o mesmo discurso: “Não podemos colocar os índios numa redoma, eles não podem ser objeto de museu”. Atrás desse pensamento vinha a ideia de um modelo de desenvolvimento que negava a subsistência desses povos. Espero que esse seja um discurso que não retome o cenário que se projetou na Ditadura Militar. A questão das minorias sempre foi complicada, mesmo dentro do sistema democrático, porque, normalmente, elas acabam sendo suplantadas por diferentes interesses em detrimento dos direitos conquistados.
Sobre a questão de que tipo de relação os povos indígenas querem manter com a sociedade nacional, em primeiro lugar, temos de admitir que existe um leque muito amplo de perspectivas e visões dos povos indígenas; as etnias estão em diferentes estágios de relação e compreensão da sociedade. Então, existem grupos que têm uma perspectiva mais próxima de autonomia – inclusive econômica – e, a partir dela, eles irão estruturar uma relação mais independente com o processo da sociedade nacional. Por outro lado, alguns grupos sequer têm conhecimento do que é e do que poderá vir a ser qualquer ação mais agressiva do ponto de vista da exploração econômica em suas terras. Então, precisamos ter uma sensibilidade e respeitar os processos dos povos indígenas.
Evidentemente, não podemos generalizar o discurso de que toda ação e relação geram impactos negativos para eles. As dinâmicas internas de toda sociedade conseguem, a partir do seu núcleo identitário, reconstruir dinamicamente as suas relações. Não podemos atropelar esse processo com o discurso de que os índios devem ter autonomia. Esse é um processo que eles, na consciência das suas relações, farão as suas opções.
Os guarani, na Bolívia, vêm amadurecendo o seu sistema de autodeterminação, uma palavra que, nos governos militares, era vista como temor, tanto que no documento da ONU optou-se por usar o termo livre-determinação, que seria uma espécie de autonomia a partir da qual os povos indígenas estruturassem as suas sociedades e continuassem dialogando com a sociedade nacional, sem atropelos e sem imposições. Buscamos esse mecanismo.
IHU On-Line – O governo diz que 95% das terras indígenas já estão demarcadas. Na prática, o que esse percentual representa e significa? Qual será o próximo passo a partir da conclusão das demarcações?
Egon Heck – Quando dizem que 95% das terras indígenas estão demarcadas, parece que o problema está solucionado. Entretanto, 100% das terras do Mato Grosso do Sul precisam ser resolvidas. 98% das terras indígenas estão na Amazônia, e lá a demarcação não chega a 95%, nunca. De acordo com os números do CIMI, as terras que estão com o processo concluído e que não têm invasões registradas não chegam à metade, ou seja, 50%. É enganoso fazer certas afirmações, sem considerar o que de fato o processo representa.
O país tem uma imensa dívida de regularização dessas terras, mas o embate político em cima da questão da própria concepção de utilidade produtiva das terras não permite que setores do agronegócio reconheçam o direito dos índios nessas regiões. O próprio governador do Mato Grosso do Sul, André Puccinelli (PMDB), tem se manifestado, dizendo: “Levem os índios para a Amazônia, lá tem bastante terra”. Esse é um discurso que desconsidera as comunidades, vem embutido de racismo e é uma afronta ao direito fundamental desses povos estarem e terem suas terras aonde eles vivem. Entre outras afirmações, lembro que já disseram que “é um absurdo dar um palmo de terra produtiva para os índios, que não produzem”.
Assim que o processo de demarcação de terras estiver resolvido, espero que tenhamos sensibilidade de sentar com os povos indígenas, criar de uma vez por todas o Conselho Nacional de Política Indigenista como um espaço de definição da política pública onde eles, a sociedade e o Estado participem. Ao devolverem as terras aos indígenas, é preciso que lhes deem condições objetivas de viverem bem nos seus espaços, não simplesmente atrelando-os ao sistema de capitalismo, mas ter outro olhar de respeito para uma vida possível na terra.
IHU On-Line – Que governo, na sua opinião, mais contribuiu para a demarcação das terras indígenas e investiu em políticas públicas indigenistas, nos últimos 16 anos?
Egon Heck – Não tenho dados numéricos, mas o fato é que ambos os governos dizem que foram os que mais desenvolveram ações em função da demarcação das terras indígenas. Todos foram campeões nessa área. Acontece, porém, que ocorreram falsas demarcações, ou seja, revalidações de ações que o governo anterior fez, que o governo atual refez, outro desfaz e assim por diante.
Todos os governos deixaram a desejar com relação à efetiva garantia e demarcação das terras indígenas. Foram feitas ações paliativas, algumas mais consistentes como a homologação de Raposa Serra do Sol. Muitas vezes se fez maquiagem de demarcação, um jogo de faz de conta porque os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário colocaram entraves, tanto é assim que divulgam um dado fantasioso de 95% das terras demarcadas, mas não falam em que situação elas estão. Não adianta dizer que o governo Lula teve um desempenho pior porque ele vai dizer que demarcou um número x de áreas, as quais podem ter sido identificadas no governo FHC, anuladas pela justiça, revalidadas por decreto, enfim, muitas armadilhas mascaram a demarcação das terras indígenas.
No último governo houve um esforço de identificação das áreas, para que pelo menos fossem identificadas todas as terras indígenas e, a partir disso, se fizesse um processo sério para que elas estivessem na mão dos povos indígenas. Então, creio que nesse jogo os números pouco vão dizer. Pode até se tentar, ufanisticamente dizer que o governo FHC fez várias demarcações, o governo Lula homologou várias terras indígenas e identificou outras tantas. Mas, se formos observar, a rigor, o que está acontecendo, vamos ver que os últimos governos não conseguiram regularizar e entregar aos povos indígenas as terras que, pela Constituição, lhes pertence.
IHU On-Line – Mas é possível fazer um balanço comparativo de como a questão indígena foi abordada nos governos FHC e Lula?
Egon Heck – Esperávamos muito mais do governo Lula do que de outros governos que tinham, na sua correlação de forças e visão política, um entendimento de desprezo dos povos indígenas, os quais entravam até como moeda de troca em algumas situações. Tínhamos a expectativa de que o governo dele pudesse avançar nesta direção, tanto é que o movimento indígena dialogou com o candidato Lula e, mais tarde, com maior dificuldade, quando ele foi presidente. Lula vai virar essa página da história sem ter criado o Conselho Nacional de Política Indigenista. Criou apenas uma comissão que teria a incumbência de criar o conselho, o qual não foi adiante porque a composição do governo não tem interesse de que isso aconteça.
Também não se conseguiu avançar em nada no organismo de execução da política indigenista, a Funai, ou seja, ela permaneceu no seu processo de sucateamento, sem políticas claras. Tudo isso fez com que tivessem avanços pontuais, mas não um avanço na política indigenista. Os índios continuam nessa perspectiva de que algo diferente possa acontecer.
Não temos nenhuma ilusão de que qualquer outro governo alinhado às forças conservadoras do país fizesse qualquer coisa de melhor para os povos indígenas. Mas o que alimentávamos era a utopia de que o avanço nessa perspectiva pudesse ser mais significativo. O próprio Lula, em conversa com os guarani, reconhece que tem uma dívida com o povo. Há um mês, quando ele esteve em Dourados conversando com algumas lideranças, disse que se sentia desafiado por ter não ter conseguido a demarcação das terras guarani e numa atitude quase desesperada, de tentar resolver a situação, pediu para comprarem 10 mil hectares para assentar os guarani que moram na beira das estradas. Os índios se colocaram totalmente contrários dizendo: “Se quer reconhecer nossas terras, compre pedaços de terras dentro das nossas terras tradicionais para que possamos ficar enquanto se arrastam os processos judiciais, mas jamais vamos aceitar comprar um pedaço de terra para assentar um grupo que tem uma relação especial com o seu território tradicional”.
IHU On-Line – Marina teria sido uma alternativa positiva para as comunidades indígenas?
Egon Heck – O povo kaiowá-guarani viu com muita simpatia o fato de ela ter sido a única candidata à presidência que se dignou a visitar uma comunidade indígena e se comprometer com eles. Isso significa uma disposição e um compromisso pessoal. Entretanto, sabemos que no conjunto da candidatura do PV, realmente a questão seria mais complicada. De qualquer modo, para os índios, a visita dela significou uma postura mais favorável a eles, mesmo que não se saiba até ponto ela seria comprida.
Acredito que haveria, pelo menos, um comprometimento pessoal dela, por conhecer a realidade das comunidades, mas isso não significa, de fato, um compromisso maior.
IHU On-Line – Serra criticou a Funasa e disse que ela está loteada por cargos de indicação pública, insinuando que isso ocorreu no governo Lula. Como o senhor interpreta essa crítica e que avaliação faz da instituição?
Egon Heck – A crítica não é verídica. A Funasa está cedida ao PMDB, que de certa forma busca adequar os quadros e indicar as funções de chefia. O que, de modo evidente, ele insinua com esse discurso é que, possivelmente, dentro de uma política de enxugamento, se criará uma agência agenciadora da saúde indígena e se aprofundem ainda mais as dificuldades que já existem.
Na Funasa, a saúde indígena não teve um resultado satisfatório porque não teve um número de quadros preparados, com o conhecimento antropológico suficiente, com uma visão de respeito e diálogo da doença, da cura e da saúde. Longe de ter respondido às demandas dos povos indígenas, a questão da saúde indígena ficou a desejar. Muito pior será se ela for atrelada a outro tipo de política, que enxugará os quadros que ainda existem. O que se precisa é, de fato, andar mais no caminho que está em curso, com a criação da Secretária Especial de Saúde Indígena, que dá autonomia aos distritos sanitários especiais indígenas.
IHU On-Line – Como será, na sua opinião, a relação dos povos indígenas com o próximo presidente da República: Dilma ou Serra? Que articulações vislumbra?
Egon Heck – Não tenho expectativa de cenários otimistas. Pelo contrário, possivelmente se aprofundarão vieses políticos e econômicos que implicarão em maior impacto sob os povos indígenas. Isso, na melhor das hipóteses, no governo da Dilma. Serra e o PSDB nunca tiveram interesse e atitude coerente com os povos indígenas, então, caso ele for eleito, estará ao bel prazer das forças econômicas e políticas que irão comandar.
Os povos indígenas estão tentando apresentar aos candidatos uma plataforma de propostas de políticas indigenistas mais urgentes a serem enfrentadas. A expectativa é que não aconteçam retrocessos. Tentamos alimentar uma esperança, sem ilusões, de que o próximo período será difícil e exigirá um amadurecimento e uma busca maior dos povos indígenas diante de seus direitos.
(Ecodebate, IHU On-line, 13/10/2010)