O debate sobre a possível aprovação do salmão geneticamente modificado pelas autoridades americanas reascendeu a discussão em torno dos alimentos transgênicos. Em entrevista ao Terra, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e especialista em organismos geneticamente modificados, Marcelo Gravina de Moraes, explica o quanto do que consumimos já possui elementos transgênicos.
Todos nós consumimos alimentos derivados da soja e do milho, que, no Brasil, são majoritariamente transgênicos. Agora, o salmão transgênico está sob avaliação do FDA, nos EUA. Ele é seguro?
Por ser transgênico, não haveria nenhuma diferença se é uma planta, um animal, bactéria, ou fungo, o processo de transformação genética não difere muito, o que interessa mais é o gene que você está colocando. O fato de ser transgênico não é o problema, tanto que nós usamos muitas bactérias transgênicas há muitos anos e ninguém se dá conta. Por exemplo, as pessoas não têm medo de consumir pão. Mas o pão usa enzimas produzidas por bactérias transgênicas. A cerveja também.
Quantos por cento do que consumimos é transgênico?
Quase 98%. Em todo o produto industrializado que contém enzimas - algumas são flavorizantes, algumas são conservantes - são enzimas biológicas produzidas por bactérias transgênicas. Só que a bactéria não está ali, o que está ali é a enzima, mas ela é produzida por um outro organismo. Fazendo uma analogia, por exemplo, com o óleo de soja, a soja é transgênica, mas o óleo de onde foi tirado o grão não é soja. É um produto da soja, mas, nesse caso, é a mesma coisa. Então o produto que você consome não é sempre o organismo em si.
Mas as vezes é. Por exemplo, se comemos um milho, o grão do milho tem o DNA, e ali tem aquele pedacinho de gene que foi colocado nas plantas. A segurança não é dada pelo processo. A transformação genética é uma forma a mais de melhoramento genético. Ela não é insegura. Por todos os estudos que têm sido feitos ela é segura, o que interessa é o gene que está sendo colocado. Eu posso colocar num peixe, por exemplo, um gene de hormônio de crescimento, como é o caso do salmão dos Estados Unidos.O que eles tem que garantir é que isso que colocaram ali não vai interferir no organismo humano. Muitas vezes é um hormônio parecido com o que ele já tem.
A verificação é praxe para todos os produtos?
Isso é análise de biosegurança do produto, que sempre é feita com qualquer transgênico, seja ele animal, vegetal, ou microorganismo. Uma coisa importante que a gente tenta sempre comparar para as pessoas entenderem é que muitos desses animais, galinhas, etc, já tem hormônios usados na sua ração. Os salmões que são criados em cativeiro recebem ração e nela entram vários aditivos, elementos da nutrição, além de medicamentos. Então você já está consumindo aquilo.
O fato do peixe ter um gene que vai alterar o seu crescimento, ou se alguém vai colocar um aditivo na ração que altera o crescimento porque ele comeu aquilo, sob o ponto de vista de biosegurança, são coisas que tem que ser tratadas também. A gente tem que pensar no que é diferente do que já se faz. Ele não é um salmão que foi pescado nas profundezas do atlântico, que nunca teve contato com ração. É salmão de criatório. É um peixe criado como uma galinha, como um porco, é criado com uma dieta artificial, numa condição de crescimento artificial.
É possível causar algum mal através da transformação genética de alimentos?
Eu conheço bem a parte genética, como é que se faz tudo, e ninguém seria maluco de fazer algo em termos negativos, nesse caso. Pode-se transformar o salmão com um gene que seja uma toxina! Mas não é o caso aqui¿é um gene que altera o crescimento do animal, que ele poderia receber por um cruzamento, ou por uma seleção, ou por uma mutação, por outros processos. A engenharia genética é mais um desses processos que se faz pra criar uma determinada característica.
As pessoas tem medo da palavra "transgênico"?
Se eu dissesse "o salmão mutante", que foi irradiado e que pode produzir coisas muito terríveis, ninguém ficaria preocupado porque não diz a palavra "transgênico". Ou se dissessem "o salmão que se alimenta de uma ração com doses absurdas de hormônio pra crescer". Quem é que vai se preocupar? Quer dizer que porque não é transgênico, não é problema? Não é bem assim.
O mais importante é saber se o que foi posto ali é uma coisa segura, se não vai alterar o alimento, se a ração que é dada também é segura, se a água é limpa, todas as coisas que cercam são importantes. Tem coisas que são realmente muito mais importantes do que a transgenia, até porque, na verdade, o que é transformado não é o peixe que você vai comer. O que é transformado é um determinado reprodutor, que depois vai cruzar. Então esse gene é incorporado nessa população de salmão. A pessoa pensa ¿ah, é um salmão que eu dou uma injeção e ele fica transgênico¿. Não funciona assim.
Como acontece?
Cria-se uma linhagem, uma família, uma população de salmões que contém um gene que um individuo ancestral recebeu. E isso de um animal receber genes de várias formas acontece na natureza. Então somos tranquilo enquanto a isso. A não ser que você faça intencionalmente algo mau. Eu sempre coloco esse ¿senão¿. Porque na engenharia genética é possível construir coisas ruins. Mas a gente não pode confundir isso com a ciência da produção de alimentos, que está aqui numa intenção de melhorar nosso mundo.
Mas é possível controlar as modificações genéticas "malignas"?
Isso não se faz. E por isso existem os órgãos regulatórios. Em plantas já temos muitos casos, mas quando é um animal, eu imagino que a primeira vez que o processo é feito, os cuidados são diferentes. Por exemplo, esse salmão vai viver num açude? Ele vai escapar para a natureza? Ele vai ser jogado no mar? Regras devem ser obedecidas. Este salmão não poderá passar esses genes pra outros salmões. Isso é uma regra com a qual se trabalha sempre com transgênicos, que é a contenção. Não permitir que isso fique na natureza.
Como estimar o que é alimento transgênico?
A gente estima pelo que é plantado. Batatas transgênicas não existem no Brasil. Temos soja, milho e algodão, nada mais. De resto, o que podemos ter são micro-organismos, mas eles não entram na legislação como transgênicos. A nossa legislação só é válida para os produtos que são consumidos. Se você transforma uma bactéria para produzir uma enzima, e a empresa purifica a enzima e usa-a para produzir um alimento, isso não é transgênico. Agora, se você transforma uma planta e consome parte dela, é transgênico. Isso é muito discutível em termos de legislação internacional, mas o Brasil adotou esta prática.
Os países europeus são contra transgênicos em plantas, mas o queijo é transgênico, porque toda a parte microbiológica da indústria de alimentos deles é transgênica. Só que eles consideram que isso é um aditivo. Você está consumindo um queijo que possui uma enzima transgênica, mas a vaca não é transgênica, não tem nada no leite que é transgênico, é só um produto químico, vamos dizer assim, uma enzima biológica que foi extraída de um outro organismo. Então "isso não é transgênico", dizem eles.
Mas, no Brasil, nós só consumimos derivados de soja, milho e algodão. Se estima que em torno de 80% da soja plantada no país é transgênica. Se for no estado do Rio Grande so Sul, é quase 100%. Em termos de Brasil é um pouco menos. Era 70% há um ou dois anos, mas isso vai entrando na cadeia alimentar, e nesse último ano, quase 80%. Aí você vê a quantidade de alimentos que possuem transgênicos: a soja entra até em embutidos de animais, como salsichas, entra em bebidas, farinhas, etc. O óleo de soja, praticamente todo ele é transgênico, e inclusive é rotulado também. E são todos genes conhecidos, são seguros, foram estudados na parte de biosegurança alimentar de forma muito rigorosa.
Quando foram desenvolvidos os transgênicos?
É uma tecnologia que foi desenvolvida na década de 80, e começou a ser usada em outros países na década de 90 e, no Brasil, foi em 2000 que começou a ser plantado. Então muitos países já consumiam bem mais que nós há muito mais tempo. Sempre quando entra alguma coisa diferente, aí sim é que surge um pouco de debate. Por exemplo, com o milho. Em alguns países tem um milho que é rico em aminoácidos, a lisina, e ele não existe no Brasil. Todos os nossos transgênicos de milho são para produzir uma proteína para uso agrícola, para tolerância herbicida, resistência a insetos, tudo a mesma coisa, praticamente. Agora esse milho rico em lisina é um milho diferente, ele visa melhorar a nossa alimentação.
O Brasil não pensou ainda nem em liberar, talvez ainda falte muito tempo pra que isso aconteça. Talvez o salmão chegue aqui daqui vinte anos. Aqui as coisas são mais lentas. É bom pra nós, a gente fica mais seguro, mas os alimentos que temos hoje não oferecem problema nenhum. Até o momento não há relatos de alergias, de pessoas intoxicadas, ou qualquer tipo de coisa. Já temos 14 anos de uso comercial de transgênicos no mundo. Mas nunca se pode generalizar. Se alguém pegar uma planta dessas, colocar uma coisa pra fazer mal, como numa guerra biológica, pode se fazer coisas ruins. Até teria formas mais fáceis, mas se quiser fazer por transgenia, também dá. Mas sobre o uso em questões normais, não há o que se temer.
(Por Angela Joenck, Terra, 24/09/2010)