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2010-09-23 | Tatianaf

Quanto você gasta por mês com o seu carro? Seja nas parcelas do financiamento, IPVA, seguro, combustível e manutenção, ou ainda nas horas parado no congestionamento, procurando vagas no estacionamento ou calibrando os pneus, o fato é que destinamos boa parte do nosso tempo e dinheiro no que deveria ser apenas um meio de deslocamento entre um local e outro.

Diversos fatores históricos, sociais e econômicos fizeram com que o carro deixasse de ser apenas um veículo para se tornar um símbolo da sociedade atual, onde a valorização dos bens materiais é mais importante que o respeito ao próximo e as questões individuais se sobrepõe ao bem coletivo.

Essa inversão de valores é uma das grandes responsáveis pelos problemas encontrados no trânsito das grandes cidades, afirma a professora Gislene Macedo, do curso de psicologia da UFC/Sobral, doutora em psicologia do trânsito e ex-membro titular da Câmara Temática de Educação e Cidadania do Contran.

“Invertemos o valor do coletivo para o individual, o que causa um problema para todos já que, à medida que você investe mais em um, você deixa de investir no outro”, diz. Esse é apenas um dos fatores que transformou um simples meio de transporte em objeto de desejo e símbolo de valores mais profundos que a mera mobilidade.

Quem reforça essa perspectiva é o antropólogo Roberto Da Matta. Em entrevista à Revista Trip, ele justificou o comportamento dos brasileiros no trânsito com a incapacidade de sermos uma sociedade igualitária. Para ele, as pessoas não instituem a igualdade como um guia para as suas condutas, o que leva a um pensamento aristocrático de que uns podem mais do que outros.

“É doentio, desumano e vergonhoso notar que 40 mil pessoas morrem por ano no trânsito de um país que se acredita cordial, hospitaleiro e carnavalesco. No Brasil, você se sente superior ao pedestre porque tem um carro. Ou superior a outro motorista porque tem um carro mais moderno ou mais caro” – Roberto Da Matta.

A conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Andréa Nascimento, lembra ainda que o modelo de vida e de mobilidade existente hoje inclui o carro na rotina das pessoas, que o levam como parte essencial do dia a dia. “Nele deixo livros, roupas, sapatos, escolho a quem dou carona, coloco som no volume que eu quiser, disputo o espaço público, pois quero fluidez”, afirma em entrevista concedida a Perkons.

A raiz do problema, segundo Da Matta, está na ascensão da indústria automobilística nos anos 50. “Isso criou o delírio de que ser dono de um carro é o coroamento do sucesso individual. E até hoje, mesmo com o mundo em colapso, não conseguimos nos livrar dessa mentalidade. Quando nós adotamos o transporte individual, estamos retomando a ideia da cadeirinha carregada por escravos do Brasil colonial”, relembra o antropólogo.

Consequências
Segundo levantamento do Ministério das Cidades e do Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN), em abril de 2010 o país já contava com uma frota de mais de 60 milhões de veículo automotores, sendo 35 milhões automóveis (57% do total) e 12 milhões de motocicletas (21%), enquanto que a frota de ônibus era de pouco mais de 430 mil unidades (0,7%).

Para Gislene, essa vitória dos carros e motos sobre os transportes coletivos deve ser comemorada apenas pelo setor automotivo. “Existe uma manutenção da indústria automotiva para manter essa cultura na sociedade. Eles comemoram e enquanto alguém ganha muito dinheiro, muitos perdem suas vidas”, diz.

Outras consequências deste fenômeno são vistas no aumento dos engarrafamentos, na maior poluição do ar, na desvalorização do transporte coletivo, na dificuldade em organizar o trânsito e no avanço do número e da gravidade dos acidentes, “o que é ainda pior”, garante a psicóloga.

Ela lembra que a média de ocupação dos veículos em cidades como São Paulo é de 1,5 passageiros por carro. Além dos problemas já citados, esse fenômeno leva a outras consequências sociais, como a solidão e o distanciamento. “Fecha-se o vidro, coloca-se o fumê, cria-se um isolamento e sua relação com o que esta fora daquele universo é cada vez menor. É uma pena que as pessoas estejam escolhendo essa opção”, opina.

Em busca de um trânsito mais humano
Na contramão desse pensamento estão os conceitos de mobilidade humana e cidades saudáveis, que buscam substituir os veículos individuais motorizados por transportes públicos não motorizados. Segundo Gislene Macedo, a razão, acima de tudo, é a defesa da vida.

“Quem sofre todo o impacto dos problemas gerados pela mobilidade motorizada e individualizada é o setor de saúde, e por tabela nós que pagamos os impostos”. Ela lembra ainda que é por conta disso que esse setor tem se engajado e mobilizado em prol da causa “até mais que os órgãos responsáveis pelo trânsito”.

Mas para atingir esse objetivo será preciso passar por cima de muitos desafios, lembram os especialistas. E mais do que pequenas atitudes individuais, será preciso tornar esse tema um assunto político. “Essa questão precisa ser defendida e respaldada pelos políticos, precisa fazer parte das suas propostas e agendas. Aos poucos vamos diminuir essa diferença até chegar o momento em que seremos obrigados a isso e talvez com mais ônus”, alerta Gislene.

Andréa faz coro e lembra que cada vez mais o governo opta pelo comércio de carros individuais, em vez de investir em outros modais que levariam a uma mudança de comportamento para outras formas de transporte.

“A redução de IPI, por exemplo, gerou nas pessoas uma demanda por carro novo para quem não tinha e para quem já tinha, que em alguns casos, nem era necessária a troca. Enquanto nosso modelo de mobilidade, de transporte, estiver sobrepujado ao modelo individualista, será muito difícil que o espaço público seja realmente público”, defende a conselheira do CFP.

“É preciso inverter a lógica existente hoje de que andar a pé, de ônibus ou de bicicleta é coisa de pobre. Precisamos de lugares seguros onde guardar nossas bicicletas, ciclovias, respeito dos outros transportes, e, acima de tudo, mudar a lógica de investimento que gasta milhões por ano para manter um sistema de trânsito totalmente voltado para o individual motorizado” – Gislene Macedo

Mas apesar de vislumbrar um futuro livre dos carros, Gislene sabe que essa é uma realidade pouco provável. “Acho dificílimo, em alguns casos acho até que é utopia”, lamenta. Ainda assim, ela acredita que é necessário seguir lutando por um trânsito mais sustentável – e não por capricho ou opção. Segundo a especialista, no futuro “não teremos saída”.

“É difícil, mas precisamos continuar demarcando isso não só no Dia Mundial sem Carro, mas todos os dias. Isso deve ser uma prática no nosso cotidiano. Deve ser incorporado como parte do nosso valor pessoal”, diz a professora que não tem carro, só usa a bicicleta para se locomover pela cidade “e queria morar mais longe do trabalho para poder pedalar um pouquinho mais”.

(OngCea, 22/09/2010)


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