Na época em que morou no Rio de Janeiro, de meados da década de 1960 ao início da de 1980, o autor destas linhas se assustava com a rapidíssima verticalização da até ali amena “Cidade Maravilhosa”, a partir da derrubada do gabarito de quatro pavimentos nas praias de Ipanema e do Leblon, seguida pelo início da ocupação intensa de São Conrado e da Barra da Tijuca, até então lugares quase só de piqueniques e praias prolongadas dos poucos donos de automóveis.
Dizia, por isso, em tom de blague, que chegaria o dia em que derrubariam o Pão de Açúcar para, com o material de demolição, aterrar a Lagoa Rodrigo de Freitas e, nela e nos vizinhos Jockey Club e Jardim Botânico, erguer imensos edifícios. Passados 30 anos, a lagoa não foi aterrada, mas, assoreada por esgotos e outros materiais, já provoca enchentes nas chuvas mais fortes; discute-se se uma parte do Jardim Botânico deve ou não ser atribuída a moradores; e, agora (Estado, 10/9), informa-se que o Jockey Club do Rio já negocia 20% de sua área para construção de edifícios de escritórios, um centro comercial e um centro médico.
[Leia na íntegra]Será esse um destino inescapável das cidades brasileiras? Há uns dois meses (Estado, 17/6), o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico do Estado de São Paulo (Condephaat) decidiu tombar a área ocupada pelo Jockey Club de São Paulo, que também pretendia ceder cerca de 100 mil metros quadrados para a construção de torres comerciais e um shopping center – seguindo uma tendência de verticalização ainda mais forte que a do Rio. Um mapa da verticalização de São Paulo (Cia. de Imprensa, 25/8) mostra que entre 1990 e 2000, segundo dados do IBGE, os bairros do Jabaquara, Moema, Pinheiros e Ibirapuera registraram mais de oito domicílios novos por metro quadrado de solo.
Há outros bairros com tendência semelhante, ainda mais lembrando que o mesmo IBGE prevê que São Paulo terá mais 600 mil habitantes em dez anos. No Rio, o Tribunal de Contas do Município mostra (O Globo, 27/6), preocupado, que a expansão urbana levou à ocupação de áreas de preservação ambiental por 65 favelas (eram 17 em 2003).
Qual será o caminho adequado? O adensamento de áreas já edificadas, para impedir que novas ocupações nas periferias exijam do poder público altos investimentos (sem recursos disponíveis) na instalação de todas as infraestruturas urbanas (viária, de energia, saneamento, educação, saúde, segurança, transporte, lazer, etc.)? Mas esses adensamentos também não geram problemas indesejáveis (congestionamentos, poluição, insegurança, etc.)? Será o IPTU progressivo para áreas não edificadas e imóveis ociosos (420 mil na capital) uma solução? Não vamos chegando a um tempo em que até a ocupação de áreas por cemitérios se torna problemática, como em São Paulo, com geração de necrochorume e contaminação do solo e da água em 40 deles (Estado, 24/5)? Problemas como os de São Paulo não se repetem da mesma forma em toda uma rota de cidades “médias” que chegam ao Triângulo Mineiro?
Ao que parece, chega-se a um momento em que a questão terá de ser repensada de forma muito ampla. Vários estudos nos últimos anos têm mostrado o agravamento do problema na mesma proporção em que se acentua a urbanização no mundo. Já chegamos a mais de 50% da população global vivendo em áreas urbanas – o que amplia muito certas necessidades, como as de transporte, energia, habitação, alimentação industrializada, etc. A China, em poucas décadas, urbanizou mais de 300 milhões de pessoas e multiplicou suas necessidades de energia (e as emissões poluentes, pelo uso intensivo do carvão). Ainda vai urbanizar mais 100 milhões. A Índia, quando se discutem mudanças climáticas, tenta demonstrar sua impossibilidade de renunciar ao carvão mineral como fonte energética, já que 400 milhões de indianos ainda não dispõem de energia elétrica.
Só que o caminho da urbanização progressiva, que é parte do modelo industrial/civilizacional que vivemos, já se mostra inviável. Estudo recente publicado na revista Science por Steven Davis e vários outros cientistas dos EUA e do Canadá (Agência Fapesp, 10/9) mostra que as atuais tecnologias disponíveis são insuficientes para manter a concentração de dióxido de carbono na atmosfera em nível (até 450 partes por milhão) que não permita a temperatura do planeta subir mais que dois graus Celsius. Só com as estruturas atuais, sem um só automóvel novo ou novas fábricas, a emissão de dióxido de carbono adicionará em 50 anos mais 496 bilhões de toneladas à atmosfera. E com isso a temperatura se elevará em mais 1,3 grau (já subiu 0,6). Se a concentração de poluentes na atmosfera, hoje em 385 partes por milhão, continuar subindo e ultrapassar 450 partes por milhão, a temperatura poderá subir além de 2 graus, com consequências gravíssimas.
Mas continuamos a urbanizar. A colocar no mundo 170 mil automóveis novos por dia. E essa e outras fontes poluidoras, principalmente combustíveis fósseis, seguem, segundo a Agência Internacional de Energia, recebendo US$ 557 bilhões anuais em subsídios de governos, enquanto as energias “limpas” e renováveis recebem US$ 46 bilhões. Para onde irá o chamado padrão civilizatório?
O professor Ignacy Sachs, mestre de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris, defende, na revista Estudos Avançados, da USP, um modelo que se assente no tripé biodiversidade-biomassas-biotecnologias, que permita a países tropicais como o Brasil “um novo ciclo de desenvolvimento rural”, que configure “civilizações modernas do vegetal, movidas a energia solar captada pela fotossíntese”. Seria um modelo capaz de manter populações na zona rural, com renda e dignidade; produzir bioenergias, adubos verdes, materiais de construção, matérias-primas industriais, insumos para química verde, farmacopeia e cosméticos. É um tema que precisa ir com urgência para nossa pauta política.
Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes{at}uol.com.br
(O Estado de S.Paulo, EcoDebate, 20/09/2010)