A ONU estima que quase 900 milhões de pessoas vivam sem água limpa e que 2,6 bilhões sem saneamento apropriado. A água, ingrediente básico da vida, está entre os assassinos mais prolíficos do mundo. Pelo menos 4 mil crianças morrem todos os dias por causa de doenças relacionadas à água. De fato, mais vidas foram perdidas depois da 2ª Guerra Mundial por causa da água contaminada do que por todos os tipos de violência e guerra.
Essa catástrofe humanitária vem inflamando há gerações. Precisamos impedi-la.
Reconhecer que o acesso à água potável e ao saneamento são um direito humano é crucial para a luta existente para salvar essas vidas; é uma ideia que chegou à maturidade. Ela foi proposta primeiro há uma década por organizações da sociedade civil, como a Cruz Vermelha Internacional, que eu ajudei a estabelecer em 1992. Hoje, é uma demanda ampla, apoiada por muitos governos e empresas. Esta é uma grande conquista.
[Leia na íntegra]Este mês, pela primeira vez, a Assembleia Geral da ONU está se preparando para votar uma resolução histórica declarando o direito humano à “água potável e segura e ao saneamento”. É uma oportunidade crucial.
Até agora, 190 países reconheceram – direta ou indiretamente – o direito humano à água potável e ao saneamento. Em 2007, líderes da região da Ásia-Pacífico reconheceram a água potável e o saneamento básico como direitos humanos e aspectos fundamentais da segurança. Em março, a União Europeia afirmou que todos os Estados devem aderir aos compromissos em direitos humanos em relação à água potável.
Nem todas as nações estão dentro, entretanto. Os Estados Unidos e o Canadá estão entre os poucos países que não abraçaram formalmente o direito à água potável. Sua relutância contínua em reconhecer o direito à água deveria ser questionada, pelo menos por seus próprios cidadãos. A estratégia de segurança nacional do presidente Barack Obama pede para promover os direitos humanos e o desenvolvimento sustentável em todo o mundo; esse objetivo deve ser traduzido no apoio ao acesso à água como um direito humano.
Poucos outros países, como a Turquia e o Egito, também hesitaram em reconhecer formalmente o direito à água, principalmente por conta de questões de água relacionadas à fronteira. Entretanto, não é necessário um consenso global absoluto. A relutância de um punhado de países não pode desviar essa tendência de importância vital.
Reconhecer a água como um direito humano é um passo fundamental, mas não é uma solução mágica instantânea. Esse direito precisa ser preservado por leis nacionais, e garanti-lo deve ser uma alta prioridade.
Falhas em fornecer água e saneamento são falhas de governança. Reconhecer que a água é um direito humano não é meramente um ponto conceitual; isso diz respeito a fazer o que deve ser feito e de fato tornar a água limpa amplamente disponível. Precisamos esclarecer a obrigação dos governo de financiar e realizar projetos que ofereçam esses serviços àqueles que mais precisam deles.
Os países em desenvolvimento incorporaram o direito à água em sua legislação, como o Senegal e a África do Sul, e foram mais eficientes em fornecer água potável do que muitos de seus vizinhos.
Estatísticas recentes da ONU mostram que o mundo está no caminho para atingir, ou até ultrapassar, as Metas de Desenvolvimento do Milênio para reduzir pela metade o número de pessoas que não têm água potável até 2015. Isso deveria ser aplaudido. Mas 1 bilhão de pessoas ainda ficarão sem saneamento. Com as taxas atuais, algumas partes da África estão pelo menos um século atrasadas em fornecer água potável e saneamento para todos. Um “apartheid da água” se abateu sobre o mundo – separando os ricos dos pobres, incluídos dos excluídos. Os esforços para remediar esta disparidade estão falhando.
Expandir o acesso à água e ao saneamento abrirá muitos outros gargalos do desenvolvimento. A água e o saneamento são vitais para tudo, desde a educação até a saúde e o controle populacional. À medida que o crescimento populacional e a mudança climática aumentam a pressão por água e alimentos apropriados, a água se tornará cada vez mais uma questão de segurança. À medida que a temperatura global aumenta, “os refugiados da água” irão aumentar. A água toca tudo, e é necessária uma forte colaboração entre todos os setores da sociedade – governos, ativistas, fazendeiros, empresários e comunidades científicas – para aumentar sua disponibilidade.
Tornar o acesso à água e ao saneamento uma realidade diária é um bom negócio, e é bom para a economia mundial. De acordo com o Programa de Meio Ambiente da ONU, um investimento de US$ 20 milhões em tecnologias baratas para a água poderia ajudar 100 milhões de famílias de agricultores a escaparem da pobreza extrema. Dedicar US$ 15 bilhões por ano às metas de água e saneamento do milênio poderia render US$ 38 bilhões em benefícios econômicos globais. É uma taxa muito boa de retorno no clima financeiro atual. E está ao nosso alcance pela primeira vez.
Há uma tremenda vontade política e momento popular por trás do movimento para declarar formalmente a água potável e o saneamento como direitos humanos. Precisamos aproveitar esse momento e traduzir nosso entusiasmo em leis sólidas, coesas e ações nos níveis nacionais e internacionais – começando pela votação esperada na ONU este mês.
Fiquei contente, há algumas semanas, de ouvir o presidente Nicolas Sarkozy convocar o Fórum Mundial da Água em 2012 – a acontecer na cidade francesa de Marselha – para ser o canal para o reconhecimento internacional do direito universal à água potável e ao saneamento. Essa causa precisa de mais “defensores” – figuras públicas respeitadas e líderes de opinião que agem como embaixadores em todo o mundo.
As ações e vozes de milhões de cidadãos trouxeram o movimento global pelo direito à água até esse ponto. Espero que mais pessoas juntem-se a nós para nos ajudar a chegar mais perto do objetivo final – um mundo em que o direito de todos à água potável e ao saneamento não é apenas reconhecido, mas também exercido.
Tradução: Eloise De Vylder
Mikhail Gorbachov foi o último presidente da extinta União Soviética e um dos responsáveis pelo fim da guerra fria. Ambientalista, Gorbachov já foi agraciado com o prêmio Nobel da paz.
(New York Times, no UOL Notícias, EcoDebate, 20/09/2010)