O Brasil é dono da maior biodiversidade do mundo, com enorme potencial para o desenvolvimento de fármacos, cosméticos e outra tecnologias baseadas em produtos naturais. Mas nunca conseguirá tirar proveito desse potencial se não controlar seu medo da biopirataria e se abrir para parcerias com cientistas e empresas internacionais, que possuem a infraestrutura e os recursos necessários para fazer esse tipo de desenvolvimento.
"Desenvolver uma droga consome pelo menos 10 anos de pesquisa e US$ 1 bilhão. E, ainda assim, só uma em cada dez candidatas chega de fato ao mercado. Quem é que vai fazer esse investimento no Brasil?", diz o químico William Fenical, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), que esteve no País na semana passada para um evento sobre biodiversidade marinha do programa Biota, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Sem uma indústria farmacêutica de grande porte, e com o trabalho de pesquisa dificultado por um série de amarras regulatórias e incertezas jurídicas, o Brasil não tem como desenvolver produtos naturais de alta tecnologia sozinho. Por isso a necessidade de parcerias internacionais, argumenta Fenical.
O problema é que, segundo ele, cientistas e empresas estrangeiras têm medo de vir ao País. "A impressão é de que o Brasil é um país fechado, controlado pelos militares e pelos burocratas; que tudo é proibido, e que sempre vai ter alguém acusando-o de ser um biopirata", disse o químico ao Estado. "Por isso ninguém quer vir fazer pesquisa com biodiversidade aqui, apesar do enorme potencial."
E atenção: Fenical não está se referindo à Amazônia. Diretor do Centro de Biotecnologia e Biomedicina Marinha do Instituto Scripps de Oceanografia da UCSD, ele é um dos pioneiros na pesquisa de produtos naturais provenientes da biodiversidade marinha - que tipicamente não recebe tanta atenção quanto a das florestas tropicais. Seus estudos atualmente são focados em microrganismos que vivem no leito oceânico. Algo que o Brasil tem de sobra, com mais de 8 mil quilômetros de costa.
"O potencial dessa área no Brasil é praticamente ilimitado", anima-se Fenical. O País é banhado por um gradiente de três zonas oceânicas (temperada, subtropical e tropical), e tem ainda a foz do Rio Amazonas, que despeja quantidades imensas de matéria orgânica, sedimentos e nutrientes no mar, criando uma grande variedade de hábitats para microrganismos marinhos.
Farmácia natural
A biodiversidade foi, historicamente, uma fonte essencial de moléculas para a medicina. Cerca de metade dos medicamentos mais usados no mundo foi desenvolvida com base em moléculas naturais, principalmente de espécies terrestres. Por exemplo, a morfina (de uma planta) e a penicilina (de um fungo).
Milhares de moléculas com efeitos medicinais já foram identificadas também em organismos marinhos, mas só quatro já viraram medicamentos nas farmácias, segundo a pesquisadora Letícia Lotufo, da Universidade Federal do Ceará. Ela coordena um projeto de pesquisa que, em dez anos, testou a atividade antitumoral de mais de 10 mil moléculas obtidas de organismos marinhos da costa cearense. Vários compostos ativos foram identificados, e várias espécies antes desconhecidas foram descritas graças ao projeto.
Tudo muito promissor, observa Fenical. Mas identificar moléculas candidatas é apenas o primeiro passo. Para transformar isso num medicamento, ainda há um longo caminho, caríssimo e cheio de incertezas.
Testes clínicos
O baixo número de drogas no mercado, diz Fenical, deve-se ao fato de as pesquisas com organismos marinhos serem relativamente recentes, em comparação com pesquisas da biodiversidade terrestre. Segundo ele, há 25 drogas de origem marinha em testes clínicos com seres humanos no momento. Duas descobertas por ele em micróbios das Bahamas: um que vive no leito marinho e outro, na superfície de uma alga.
Vários pesquisadores brasileiros que participaram do evento concordaram com as observações de Fenical. "Você pode ter a biodiversidade que quiser; se não tiver biotecnologia e indústria para desenvolver produtos, não vai fazer nada com ela", disse a química Vanderlan Bolzani, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara.
"Ou a gente trabalha em parceria com as instituições estrangeiras, ou vamos morrer na praia com a nossa biodiversidade", reforçou Roberto Berlinck, químico da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos.
(Por Herton Escobar, O Estado de S. Paulo, IHU-Unisinos, 13/09/2010)