Araucárias centenárias e quase cinco mil árvores nativas sumiram do Rio Grande do Sul. É o que aponta o estudo do projeto FRAG-RIO Uruguai, coordenado pelo professor da Unipampa, Rafael Cabral Cruz. O objetivo da pesquisa é aprimorar a metodologia de avaliação de fragilidades ambientais, em apoio à gestão ambiental integrada e à tomada de decisão no processo de licenciamento ambiental de empreendimentos hidrelétricos, nas regiões do Médio e Alto Uruguai, com foco no trecho nacional da Bacia Hidrográfica do Rio Uruguai.
Em entrevista, realizada por telefone, à IHU On-Line, Cabral descreve a situação da Bacia do Rio Uruguai com a construção de hidrelétricas como a de Barra Grande e as consequências que a inadequada metodologia utilizada no primeiro estudo feito pela Empresa de Pesquisa Energética – EPE trouxe para a região. “Toda crise ocorreu em função da omissão de uma área com aproximadamente 1500 hectares de floresta em local de alagamento. Não haviam sido mapeados no levantamento florístico da área de influência direta, omitidos no estudo de impacto ambiental. Esse fato acabou sendo descoberto em uma vistoria aérea feita por técnicos da Fepam e do Ibama”, explica o professor.
Rafael Cabral Cruz é graduado em Oceanologia pela Universidade Federal do Rio Grande, mestre e doutor em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, é professor da Universidade Federal do Pampa – Unipampa e da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.
IHU On-Line – Em que contexto surgiu o estudo FRAG-RIO Uruguai?
Rafael Cabral Cruz – O estudo nasce como uma consequência da análise que a Empresa de Pesquisa Energética – EPE fez de avaliação ambiental integrada da Bacia do Rio Uruguai, que foi encomendado como uma das condicionantes impostas pelo compromisso efetuado entre o Ministério Público Federal, Ministério do Meio Ambiente, Baese e todos os envolvidos no caso de Barra Grande. O acordo se deu em função da fraude que ocorreu durante os estudos ambientais e de licenciamento deste empreendimento. O Ministério do Meio Ambiente ficou responsável por efetuar um termo de referência desta avaliação ambiental integrada, e esses estudos foram desenvolvidos por um consórcio privado levando muito tempo para serem concluídos.
Quando esse relatório chegou ao Ministério do Meio Ambiente, percebeu-se que havia muitas informações, mas não estavam integradas de forma adequada. Isso fez com que eles não conseguissem extrair do estudo as diretrizes para o licenciamento de hidrelétricas na Bacia do Rio Uruguai, que era a demanda do Ministério Público Federal. O Ministério do Meio Ambiente já conhecia o nosso trabalho desenvolvido com análise de fragilidades ambientais aplicadas à avaliação integrada de bacias no Rio Grande do Sul, numa linha de trabalho que começou com a Fundação Estadual de Proteção Ambiental – Fepam e com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS com o estudo do Taquari-Antas. Acabamos formando uma equipe e dando uma evolução metodológica muito grande na abordagem. A Fepam conseguiu extrair as suas diretrizes de licenciamento nessas bacias. O tipo de trabalho que nós desenvolvemos forneceu uma informação útil ao órgão licenciador. Quando não conseguiram extrair aquelas informações que precisavam nos estudos, conhecendo essa experiência bem sucedida que nós tínhamos junto à Fepam, nos convidaram para fazer uma proposta tendo em vista desenvolver estudos, principalmente, para retrabalhar todo o conteúdo da Bacia do Uruguai dentro da nossa abordagem, de forma que a integração se desse num grau de espacialização que nos permitiu hierarquizar os trechos de rio com base na sua fragilidade ambiental e não simplesmente em grandes setores de bacia, como havia no estudo da EPE.
O novo estudo
As perguntas eram as seguintes: “Se eu tenho dinheiro para investir em uma barragem dentro de um setor da bacia, qual o trecho de rio onde eu causaria o menor impacto ambiental? Onde eu priorizaria a aplicação deste recurso para evitar maiores impactos ambientais?” Esse foi o grande motor que levou o Ministério a nos procurar e contratar para um projeto de demanda do governo federal. Nos reunimos inúmeras vezes em Brasília para discutir o projeto e como adotar nossa metodologia para um rio nacional. Nós só tínhamos trabalhado com águas estaduais, ou seja, com problemas de licenciamento típicos do Rio Grande do Sul. Como incluir Santa Catarina nessa nova pesquisa? Formalizamos um projeto que passou pelo crivo do Ministério do Meio Ambiente, foi submetido ao Ministério da Ciência e Tecnologia, remetido ao CTHidro da câmara técnica e, por fim, encaminhado à Companhia de Desenvolvimento da Paraíba – CINEP E ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq para sua execução.
IHU On-Line – Onde está situada a hidrelétrica de Barra Grande?
Rafael Cabral Cruz – São muitos os municípios. Ela está situada no Alto Uruguai e pega o Rio Pelotas bem em seu trecho central. Todos os municípios daquela região, tanto no Rio Grande do Sul, como em Santa Catarina, são abrangidos. Do lado de cá, municípios como Erechim, Esmeralda e Vacaria seriam afetados pela Usina de Barra Grande.
IHU On-Line – Quais eram os principais problemas do primeiro licenciamento ambiental da hidrelétrica de Barra Grande?
Rafael Cabral Cruz – Toda crise ocorreu em função da omissão de uma área com aproximadamente 1500 hectares de floresta em local de alagamento. Não haviam sido mapeados no levantamento florístico da área de influência direta, omitidos no estudo de impacto ambiental. Esse fato acabou sendo descoberto em uma vistoria aérea feita por técnicos da Fepam e do Ibama. Ao pedir para que o piloto do helicóptero descesse, tiveram plena certeza de que uma área muito grande, com mata em excelente estado de preservação, seria inundada. Quando ocorreu essa descoberta, a obra estava praticamente pronta. Era uma situação irreversível do ponto de vista ambiental.
O que restava era responsabilizar os culpados e trabalhar com medidas mitigadoras e compensatórias com relação a essa omissão, que virou um escândalo na época. Em função disso se tornou obrigatório esse termo de compromisso, que foi assinado envolvendo diversos órgãos. Todos que participaram receberam responsabilidades. Um dos itens envolvia o estudo de avaliação ambiental integrada da bacia do Rio Uruguai, que teria como objetivo não só evitar que novos casos como o de Barra Grande acontecessem, mas também dar diretrizes ao licenciamento das hidrelétricas na Bacia do Rio Uruguai.
IHU On-Line – Quem fez o primeiro estudo?
Rafael Cabral Cruz – O termo de referência foi feito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e depois, licitado, a execução coube a um consórcio de empresas.
IHU On-Line – Foi a relação com essas empresas que trouxe problemas para o estudo?
Rafael Cabral Cruz – Não. Antes de ser professor universitário, tive a oportunidade de trabalhar em empresas de consultoria, inclusive em uma que participou do estudo da EPE. A empresa procura desenvolver o estudo de acordo com o termo de referência. Não foi só um problema na execução, sempre há outros percalços. Há sempre alguma interferência de quem encomenda o estudo, no caso de Barra Grande, foi a EPE, que tinha a diretriz de produzir informação de tal forma que não ficasse especificado qualquer restrição ao empreendimento localizado, só considerações gerais. Por isso que foi tudo setorizado.
Houve falha também do próprio Ministério de Meio Ambiente, que não conseguiu perceber a armadilha do termo de referência. A abordagem metodológica que não conseguia costurar as fragilidades ambientais e responder a essas perguntas já estava no termo de referência aprovado pelo Ministério. As falhas do estudo da EPE não foram consequência de informações erradas, mas resultaram de uma abordagem metodológica que não atendia adequadamente aos objetivos do estudo. O órgão precisa determinar se o empreendimento é viável ambientalmente ou não, o que faz parte do cotidiano dos licenciamentos.
Aquele estudo pode ser aproveitado para muitas coisas, como análises regionais, mas para esta pergunta específica, que está relacionada a hierarquias de trechos de rios, de cenários de possíveis empreendimentos e de empreendimentos em si, não era respondida de forma integrada. As próprias instituições de nível federal ainda não sabiam como proceder, pois é uma abordagem nova e que ainda está em desenvolvimento. A primeira versão, completamente diferente da atual, foi usada com o Taquari-Antas em 2001 e por isso é muito recente. Muitas vezes, na dinâmica desses estudos, nem tudo é uma questão de erros ou acertos. O que é completamente diferente do que ocorreu em Barra Grande. Lá, o inventário florestal tinha sua metodologia estabelecida, não havia desenvolvimento metodológico sendo discutido, era um mecanismo consolidado há muitas décadas. Realmente foi uma omissão, um erro gravíssimo. No caso do estudo do EPE, nossa análise apontou que a máquina federal não estava amadurecida naquele momento para produzir uma abordagem metodológica que respondesse às perguntas das quais o setor de licenciamento ambiental de barragem estava precisando.
O FRAG-RIO é um projeto que ainda está em andamento, pois teve só a primeira etapa concluída. Estamos em sua segunda fase, que abrange o trecho da bacia que engloba todo o trecho médio do Rio Uruguai dentro do Rio Grande do Sul. As bacias do Turvo, Ijuí e demais afluentes no trecho internacional serão incluídas nesta etapa do estudo.
IHU On-Line – Que consequências esse primeiro estudo ambiental trouxe à região atingida pela hidrelétrica de Barra Grande?
Rafael Cabral Cruz – Por decisão do Ministério Público Federal, as decisões das grandes barragens deveriam ficar paradas até a conclusão dos estudos de avaliação ambiental integrada, que dariam diretrizes de licenciamento para o Rio Uruguai. O único problema foi ter atrasado as tomadas de decisões. O Ministério do Meio Ambiente teve de desenvolver todo um processo para nos contratar. Não foi o FRAG-RIO que produziu as diretrizes, quem faz isso é o órgão competente. Nós desenvolvemos um documento que subsidiou a construção das diretrizes. O Ministério do Meio Ambiente estabeleceu uma série de restrições nos dois trechos remanescentes do Rio Uruguai, onde estão previstos empreendimentos, como as usinas de Barra Grande, Passo da Cadeia Itapiranga e as represas do Complexo Garabí. As consequencias só serão conhecidas a partir das efetivas decisões no processo de licenciamento que o Ibama e o MBA estabelecerem.
IHU On-Line – O que mudou na estrutura de funcionamento da hidrelétrica depois que o senhor apresentou o segundo estudo?
Rafael Cabral Cruz – Pelo fato de as abordagens integradas permitirem uma análise bem mais consistente do impacto das hidrelétricas, temos visto certa preocupação dos empreendedores, que já não consideram o impacto de áreas como coisas facilmente resolvíveis. Por exemplo: temos cerca de três mil pescadores registrados na Bacia do Uruguai. Dentro dos estudos econômicos, são classificados como artesanais-profissionais. O FRAG-Rio aponta a necessidade de não caracterizar essas populações de pescadores somente como atingidos por barragens numa forma genérica. Estamos procurando desenvolver estudos que fornecem indícios para enquadrar essas populações como tradicionais. Isso tem implicações jurídicas importantes, pois nenhuma obra pode extinguir o modo de vida de uma população tradicional, segundo a Constituição de 1988.
É o caso, por exemplo dos Caiçaras, no litoral do Paraná e de São Paulo, indígenas e quilombolas, que têm de ser tratados dentro dos estudos com status muito mais alto do que simplesmente “ribeirinhos”. Identificamos também a interdependência da atividade pesqueira em relação aos trechos de rio contínuo, remanescentes dentro da bacia. Nosso estudo demonstra que o impacto cumulativo da fragmentação dos rios pode não extinguir as populações de peixes migradores, mas inviabilizar a cultura dos pescadores. A pesca que desenvolvem tem aspectos culturais, transmitidos há gerações, sobre a localização dos pesqueiros, qual isca usar, como desenvolver com as próprias mãos os artefatos de pesca, onde pescar. São segredos que configuram conhecimento tradicional. Isso se dá em cima daquelas espécies que têm valor não só cultural, mas também econômico alto, como dourado, surubim e outros peixes migradores de médio e grande porte da Bacia do Uruguai. Eles demandam grandes trechos de rio livre para manter o tamanho da população. Esse estoque pesqueiro é explorado por pescadores desde Quaraí até Chapecó.
Procuramos mostrar que a fragmentação dos rios pode fragilizar muito a sociedade humana. As diretrizes estão exigindo agora cuidados com os locais de produção dessas espécies assim como em relação ao monitoramento do tamanho populacional destas mesmas. Isso é um grande avanço. Os empreendedores vão pensar duas vezes antes de investir em determinado trecho. As consequências e mudanças já estão acontecendo, induzidas por esses estudos. O próprio poder público passará a colocar em seus editais esses temas; universidades desenvolverão estudos para analisar esses pontos. Há uma grande mobilização potencial para tentar minimizar ao máximo o impacto dessas barragens.
(Ecodebate, IHU On-line, 08/09/2010)