O maior problema que o Brasil enfrenta para limpar sua matriz elétrica é que ela já é, essencialmente, limpa – criando uma situação confortável que reduz a pressão por investimento em novas tecnologias. Quase 90% da eletricidade produzida no País em 2009 veio de fontes renováveis – principalmente hidráulica (83,7%), biomassa (5,9%), e uma pequena participação de eólica (0,3%), segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e Energia.
Estudos mostram que há um enorme potencial ainda não aproveitado em energia eólica e solar no País, que poderia substituir os 10% que ainda são gerados em usinas nucleares e termelétricas poluentes, movidas a combustíveis fósseis. Transformar esse potencial natural em capacidade instalada e produção de fato, porém, exige superar uma série de gargalos econômicos, tecnológicos, logístico e regulatórios. Até 2019, pelo menos, a previsão da EPE é que o perfil da matriz energética brasileira como um todo não mudará substancialmente.
“O carro chefe continuará a ser a energia hidrelétrica. As outras renováveis vão crescer pouco a pouco”, prevê o diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Nelson Hubner. A energia eólica, apesar da participação pequena em comparação a outras fontes, já aparece como uma indústria bem consolidada, economicamente competitiva e capaz de andar com as próprias pernas, segundo ele – sem depender de incentivos do governo. Ainda assim, nunca deixará de ser uma fonte “complementar”, afirma Hubner.
Não é viável imaginar que em 2030, ou até 2050, o Brasil será um país só de energias renováveis. A transição não é tão rápida assim”, diz o especialista em planejamento energético Roberto Schaeffer, da Coppe-UFRJ. No caso específico da eólica, segundo ele, mesmo que o potencial seja grande, “vários estudos mostram que a energia eólica não pode representar mais do que 20% ou 30% da matriz energética de um país”, na melhor das hipóteses. Um dos problemas é que a produção de energia flutua literalmente ao sabor dos ventos, tornando o fornecimento menos confiável do que o de uma fonte térmica ou hidráulica. Na Alemanha, diz Schaeffer, para cada 100 MW contratados de energia eólica, o sistema enxerga como se fossem apenas 5 MW. “É preciso haver uma redundância, caso pare de ventar. E essa redundância custa caro.”
Economicamente, o vento brasileiro já concorre de igual para igual com a biomassa e outras fontes térmicas. Tanto que no último leilão de energias renováveis, realizado na semana passada, a energia eólica foi a grande vencedora, com 899 MW médios contratados, versus 190 MW de biomassa e 70 MW de pequenas centrais hidrelétricas. Mas não concorre ainda com a potência da água de grandes usinas. Para gerar a mesma quantidade de energia que será produzida pela hidrelétrica de Belo Monte, por exemplo, seria necessário instalar 700 km de torres aerogeradoras (moinhos) enfileiradas, e o custo da energia produzida seria bem maior, segundo Hubner.
Até o fim do ano passado, havia 36 parques eólicos em funcionamento no País, gerando 602 MW, segundo um documento da Aneel. O Plano Nacional de Energia previa a adição de 6.300 MW desse tipo de energia até 2030, comparado ao que existia em 2005.
Para o pesquisador Sergio Colle, coordenador dos Laboratórios de Engenharia de Processos de Conversão e Tecnologia de Energia (Lepten), da Universidade Federal de Santa Catarina, o Brasil poderia ser muito mais ambicioso no aproveitamento de seu potencial eólico. Não só do ponto de vista da sustentabilidade energética, mas também do desenvolvimento tecnológico e industrial. “Enquanto a gente fala em 3 GW, a China projeta 30 GW”, compara. “O Brasil não pode se dar ao luxo de ficar de braços cruzados e desperdiçar as oportunidades, só porque nasceu no ‘berço esplêndido’ das hidrelétricas e da biomassa. Não pode se omitir de investir em outras tecnologias renováveis.”
DESPERDÍCIO SOLAR
A situação é ainda pior no caso da energia solar. “Há uma completa omissão do governo sobre essa tecnologia”, afirma Colle. O aproveitamento é irrisório, tanto para aquecimento de água quanto para geração elétrica, e a produção nacional é baseada em tecnologias ultrapassadas. “A indústria nacional produz cerca de 800 mil m² de coletores solares planos baseados em concepções primitivas, copiadas dos primeiros coletores solares da década de 20”, diz Colle. “Estamos na idade da pedra polida em desenvolvimento tecnológico de energia solar.”
O potencial, por outro lado, é enorme. País de maior extensão territorial nos trópicos, o Brasil é “abençoado” não apenas com muita água, mas também com muito sol. Para se ter uma ideia, o pesquisador Enio Bueno Pereira, do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), faz a seguinte comparação: se a área do reservatório da usina hidrelétrica de Balbina (2.360 km2), no Amazonas, fosse coberta de painéis fotovoltaicos, a energia gerada (cerca de 500 TWh/ano) seria suficiente para atender todo o consumo nacional de energia elétrica (cerca de 455 TWh/ano). “Não proponho que isso seja feito, mas é uma boa ilustração do potencial dessa tecnologia”, explica ele.
Um problema é o preço. A eletricidade solar ainda é uma energia relativamente cara, tornando um empreendimento deste porte proibitivo economicamente. O que não significa que ela não possa ter um papel estratégico no desenvolvimento sustentável da matriz energética nacional. A estratégia mais simples, propõe Pereira, seria disseminar o uso de painéis solares em telhados para uso doméstico, como forma de reduzir a demanda sobre o sistema e, assim, liberar mais energia para uso industrial, especialmente nos horários de pico.
Eventualmente, assim como fazem as usinas de açúcar e álcool com a cogeração de bioeletricidade do bagaço de cana, os produtores domésticos de energia solar poderiam vender o excedente de sua geração para o sistema integrado, afirma Pereira. Ele e outros pesquisadores da área defendem firmemente a criação de uma política de regulamentação que incentive o uso da energia solar, tanto na indústria quanto nos domicílios. “Se o governo não der incentivo, essa tecnologia não vai decolar nunca”, afirma Pereira. “O custo inicial não é competitivo. Só fica competitivo quando aumenta o número de usuários e há demanda garantida, como aconteceu com a eólica.”
“Se houver um compromisso de compra, a indústria virá para cá, com certeza”, reforça o pesquisador Ricardo Ruther, da Universidade Federal de Santa Catarina e diretor técnico do Instituto para o Desenvolvimento das Energias Alternativas na América Latina (Ideal). Em algumas regiões, diz ele, a energia solar poderia se tornar competitiva já nos próximos anos. “Os custos estão caindo e vai chegar um momento, ainda nesta década, em que instalar um telhado solar e gerar sua própria eletricidade será mais barato do que comprar energia das concessionárias”, diz. “Quando esse momento chegar, o cidadão tem de ter o direito de optar pela alternativa mais barata. Só que, hoje, o consumidor não pode se conectar diretamente à rede. O governo tem de criar a regulamentação necessária para que isso aconteça.”
(Por Herton Escobar, O Estado de S. Paulo, 01/09/2010)