Cresce a tensão mundial em torno de créditos de carbono “falsos” – A ONU (Organização das Nações Unidas) estaria reconhecendo a existência de uma enorme falha no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL)? Em menos de um mês, seis fábricas asiáticas viram suas alocações de créditos de carbono sendo bloqueadas pela ONU, tempo de verificar se essas indústrias abusaram ou não do MDL, principal dispositivo do protocolo de Kyoto que permite aos países desenvolvidos financiarem reduções de emissões de gás de efeito estufa nos países em desenvolvimento, em troca de cotas de CO2.
No momento em que a negociação internacional sobre o clima deve decidir sobre o futuro do protocolo de Kyoto e obriga as nações industrializadas a acelerarem sua ajuda aos países pobres, o caso vem causando polêmica, a ponto de o debate técnico ter adquirido um viés muito político.
Todas as instalações suspeitas dizem respeito à combustão do HFC23, um potente gás de efeito estufa originado da fabricação do gás refrigerante HCFC22. Sozinhos, os 19 locais de destruição do HFC23 produzem metade dos créditos de carbono do MDL. O problema: segundo organizações não-governamentais, o cálculo considerado pela ONU, generoso demais, levou a indústria química a inchar artificialmente a produção de HCFC22 e do HFC23. A maioria desses créditos seriam, na verdade, “falsos”. Reportagem de Grégoire Allix, Le Monde.
Nervosismo
A comissão executiva do MDL, que recebeu o caso no fim de julho, não condenou oficialmente o mecanismo. Mas, alarmada por seus próprios peritos, ela visivelmente decidiu colocá-lo em suspensão, inclusive para os projetos já aprovados.
A pausa poderá ser longa: as Nações Unidas agora exigem, antes de distribuir os créditos de carbono, poder verificar dez anos de dados técnicos e comerciais para cada fábrica. Ao todo, mais de 9 milhões de títulos de emissão esperados pelo mercado já estão bloqueados, talvez definitivamente. E é só o começo: todos os pedidos por vir deverão ser suspensos, o que mergulha o mercado do carbono em um certo nervosismo.
“Isso tem um impacto muito forte: esperam-se 30 a 40 milhões de créditos a menos até o fim do ano”, calcula Emmanuel Fages, analista de carbono na Orbeo. “Até 2012, a suspensão dos HFC23 poderá representar até 150 milhões de créditos de carbono a menos em um total de 900 milhões esperados por meio do MDL”. Logicamente, essa escassez das permissões de emissão fez aumentar o preço dos créditos vindos do MDL, 10% em dez dias, puxando o preço das cotas europeias, sobre as quais se concentram os especuladores.
Acima de tudo, o caso se tornou alvo de uma polêmica entre instituições internacionais. O Banco Mundial surpreendentemente apresentou-se como defensor dos projetos HFC23, sem nem mesmo esperar os resultados da investigação da ONU. Em um documento publicado em seu website, a instituição desconsidera uma a uma as críticas e as dúvidas. Antes de concluir que “a metodologia de incineração do HFC23 não deveria ser suspensa” e que uma possível revisão “deverá se apoiar nos conselhos da indústria e dos especialistas do setor”.
Um sistema frágil
Esse argumento foi duramente criticado pelas ONGs Environmental Investigation Agency, CDM Watch e Noé21, que denunciam um “conflito de interesses”. O Banco Mundial de fato investiu, em 2006, em dois dos maiores projetos de incineração de HFC23 na China – sendo que um deles acaba de ser suspenso pela ONU – , desembolsando, por meio de seu fundo Umbrella Carbon Facility, 775 milhões de euros para 130 milhões de créditos, dos quais muitos ainda não lhe foram entregues.
Em 25 de agosto, era a comissária para o Clima, Connie Hedegaard, que incendiava a polêmica. “Pedi a meus serviços que preparem novas restrições para o uso dos créditos ligados aos gases industriais após 2012”, disse a comissária, que quer “uma ampla revisão” do MDL.
Em outras palavras, critérios de qualidade mais exigentes que os da ONU poderão ser impostos pela Europa antes de autorizar a entrada dos créditos de carbono do MDL no Regime Comunitário de Licenças de Emissão. Uma proposta poderá ser finalizada com a conferência sobre o clima de Cancún (México), no fim de novembro, e submetida ao Parlamento Europeu. A decisão teria consequências consideráveis: a Europa continua sendo a locomotiva do mercado mundial de carbono.
Frente a essas ameaças sobre a principal fonte de permissões de emissão, o Banco Mundial invoca o fantasma de um colapso da economia do carbono: “As reduções de emissões de gases de efeito estufa geradas pelos projetos HFC23 são cruciais para criar liquidez no mercado do carbono”. Proteger créditos duvidosos para não abalar o dispositivo de combate à mudança climática: a hipótese em si revela como o sistema é frágil.
(Le Monde, no UOL Notícias, EcoDebate, 01/09/2010)