Durante muito tempo a ciência considerava que a gotículas de água presentes na atmosfera eram eletricamente neutras, assim permanecendo mesmo depois de entrar em contato com as cargas elétricas de partículas dispersas no ar.
Mas um experimento realizado por cientistas brasileiros demonstrou que a água na atmosfera pode adquirir cargas elétricas e transferi-las para outros materiais. A descoberta abre caminho para o futuro desenvolvimento de dispositivos capazes de coletar eletricidade diretamente do ar, utilizando-a para abastecer residências, fábricas ou veículos, por exemplo.
Partículas minúsculas de sílica e de fosfato de alumínio foram utilizadas no experimento. A equipe coordenada por Fernando Galembeck, professor titular do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), demonstrou que, na presença de alta umidade, a sílica se torna mais negativamente carregada, enquanto o fosfato de alumínio ganha carga positiva. A eletricidade proveniente da umidade foi denominada pelos cientistas como “higroeletricidade”.
“Com um dispositivo simples, conseguimos verificar que é possível gerar voltagem a partir da umidade do ar. Essa prova conceitual poderá abrir caminho, no futuro, para que se possa usar a eletricidade da atmosfera como uma fonte de energia alternativa. Mas ainda não podemos prever quanto tempo levará para desenvolver uma tecnologia desse tipo”, disse Galembeck à Agência FAPESP.
O pesquisador, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) em Materiais Complexos Funcionais, apresentou os resultados do estudo na última quarta-feira (25/8), durante a reunião da American Chemical Society (ACS), em Boston, nos Estados Unidos. O INCT de Materiais Complexos tem apoio da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Segundo Galembeck, relatos experimentais do século 19 já associavam a interface ar-água a fenômenos eletrostáticos. O britânico William Thomson, conhecido como Lord Kelvin (1824-1907), idealizou um equipamento que ele denominou “condensador de gotas de água” para reproduzir o fenômeno experimentalmente. Mas, até hoje, a ciência não havia sido capaz de descrever os mecanismos do acúmulo e da dissipação das cargas elétricas na interface ar-água.
“Mostramos que a adsorção do vapor de água sobre superfícies de materiais isolantes ou de metais isolados – protegidas em um ambiente blindado e aterrado – leva à acumulação de cargas elétricas sobre o sólido, em uma intensidade que depende da umidade relativa do ar, da natureza da superfície usada e do tempo de exposição”, disse Galembeck.
O aumento das cargas elétricas acumuladas é ainda mais acentuado quando são usados substratos líquidos ou isolantes sólidos, sob a ação de campos externos, conforme a umidade relativa do ar se aproxima de 100%.
De acordo com Galembeck, a descoberta foi um resultado inesperado de uma longa série de estudos relacionados a dois tipos de microscopia de materiais não-isolantes, especialmente polímeros.
“Estávamos trabalhando com microscopia eletrônica de transmissão – que nos permitia montar um mapa da composição química de determinados materiais em escala nanométrica – e com microscopia de varredura, que fornecia um mapa das propriedades e do potencial elétrico desses materiais”, explicou.
O interesse da equipe estava inicialmente limitado aos materiais. “Mas, ao obter esses mapas, começamos a observar muitos fenômenos que não estavam na literatura. Havia, em especial, heterogeneidades inesperadas nas distribuições de cargas elétricas. Embora não fossem contrários a estudos anteriores, os resultados do nosso trabalho iam contra concepções amplamente difundidas. Era preciso entender o que estávamos observando e isso me levou a estudar mais sobre eletrostática”, disse.
Aprofundando as pesquisas, Galembeck percebeu que havia imensas polêmicas na literatura sobre o tema. Apesar disso, essas discussões não estavam no foco dos debates científicos.
“Percebi que havia muitas lacunas, algumas delas muito grandes. Alguns autores se referiam a essas lacunas, mas não conseguiam despertar muita atenção da comunidade científica. Continuei estudando, até que, em 2005, um trabalho de pós-graduação de um aluno gerou a hipótese de trabalho de que existe troca de cargas com a atmosfera”, disse.
No decorrer desse trabalho, o grupo da Unicamp percebeu que, além da sílica e do fosfato de alumínio, alguns metais também adquiriam carga. “A partir daí fizemos também experimentos com os metais. Esse trabalho já começou a gerar resultados também. A primeira publicação saiu na semana passada, na edição on-line da revista Langmuir”, disse.
Longo caminho para a tecnologia
Segundo Galembeck, há um longo caminho pela frente para que essa demonstração de conceito se transforme um dia em aplicações tecnológicas, como dispositivos que coletem a eletricidade do ar e a direcionem para equipamentos elétricos nas casas, de forma semelhante aos painéis que transformam a luz solar em energia.
“De um ponto de vista conservador, eu diria que estamos mais ou menos no ponto em que a energia fotovoltaica estava no começo do século 20. Sabemos que hoje a energia solar tem algumas aplicações, mas a maior parte delas ainda tem alto custo. De uma perspectiva mais otimista, eu diria que o uso da higroeletricidade dependerá essencialmente do desenvolvimento de novos materiais, que é cada vez mais acelerado com os recursos da nanotecnologia”, apontou.
No momento, os cientistas têm duas tarefas principais para fazer com que um dia a nova tecnologia se torne realidade: a identificação dos melhores materiais e a obtenção de dados para fazer a modelagem dos dispositivos.
“Estamos agora trabalhando no levantamento de dados a partir dos materiais que sabemos que funcionam. Por enquanto, são materiais simples como alumínio, aço inox e latão cromado”, disse. Provavelmente, não serão esses os materiais usados nos dispositivos do futuro, mas o fundamental agora é fazer o levantamento de dados”, disse.
Quando tiverem concluído o levantamento de dados para a modelagem de dispositivos, segundo Galembeck, os cientistas terão boas perspectivas em relação a duas questões fundamentais: quanta energia poderá ser produzida com a higroeletricidade e quais são as propriedades necessárias para os materiais que serão utilizados nos dispositivos.
“Há duas semanas começamos a fazer o trabalho de levantamento de dados para a modelagem. Começamos também a fazer experimentos com a modificação da superfície dos metais. Há uma infinidade de possibilidades para explorar. A dificuldade está em determinar em quais delas devemos nos concentrar”, disse.
(Por Fábio de Castro, Agência FAPESP, EcoDebate, 27/08/2010)