Que consequências trarão para a Rússia a onda de calor e os incêndios que, em julho e em agosto, destruíram 200 mil hectares de florestas, aniquilaram um terço das colheitas de cereais e deixaram 2.000 pessoas sem teto? Se o custo econômico da catástrofe foi avaliado em US$ 14 bilhões (R$ 25 bilhões) – 1% do PIB -, seu custo político parece inexistente: a popularidade da dupla Putin (47% de opiniões favoráveis) – Medvedev (39%) é inabalável.
Mas talvez a catástrofe esteja mudando a percepção que as autoridades têm sobre as questões ambientais. O fato de que a Rússia também pode ser atingida pela mudança climática agora parece estar sendo considerado mais seriamente pelo Kremlin.
“Infelizmente, o que vem acontecendo hoje em nossas regiões centrais é a prova da mudança climática do planeta. Nunca na história de nosso país sofremos condições como essas”, reconheceu recentemente o presidente Dimitri Medvedev. Reportagem de Marie Jégo, Le Monde.
Bem diferente do tom jocoso de seu antecessor Vladimir Putin que, em setembro de 2003, durante a conferência de Moscou sobre a mudança climática, foi rápido em afirmar que um “aquecimento de 2 a 3 graus não seria grave, e sim até mesmo benéfico: gastaria-se menos com casacos de pele e roupas quentes”.
Onda de calor
O ex-oficial da KGB, hoje primeiro-ministro, nunca realmente se sensibilizou com os argumentos ecológicos. Não foi ele que, após chegar ao Kremlin, em março de 2000, acabou com o ministério do Meio Ambiente? Deve-se lembrar que o movimento ambientalista na Rússia tem uma verdadeira dimensão política e popular, e por isso ele só poderia ser visto como um perigo para Vladimir Putin, que dirige o país como um quartel.
Em meados de agosto, quando Moscou acabava de sair de uma semana de asfixias por uma espessa nuvem de monóxido de carbono vindo das turfeiras em chamas, Alexandre Berditski, conselheiro do Kremlin e presidente da Organização Meteorológica Mundial (OMM), reconheceu que “o calor anormal do verão de 2010 era o resultado da mudança climática”. Pior ainda, ele pode vir a se tornar “um fato corriqueiro”.
Era preciso trazer as pessoas de volta à razão, uma vez que os analistas se puseram a atribuir responsabilidade sobre os acontecimentos aos Estados Unidos, suspeitos de terem lançado sobre a Rússia uma nova arma climática por meio de sua estação meteorológica no Alasca.
Na realidade, a onda de calor (com temperaturas próximas dos 40 graus centígrados durante seis semanas, pela primeira vez em 130 anos) e os incêndios mostram a dificuldade da situação da Rússia, presa entre a dependência de matérias-primas e a vulnerabilidade aos efeitos do aquecimento climático.
Quarto maior país emissor de carbono do mundo, a Rússia se comprometeu, em novembro de 2009, a reduzir suas emissões em 20% até 2020. Mas as promessas permanecem vagas. Por enquanto, as petroleiras russas continuam fiéis à prática da queima dos gases saídos dos poços de petróleo. Queimar o gás e depois lançá-lo na atmosfera é considerado uma solução relativamente eficaz para se livrar dos gases resultantes da produção petroleira. Se fossem soltos na atmosfera, os gases não queimados, cheios de metano, seriam bem mais nocivos que o CO2.
A queima de gás aumenta as emissões de CO2, mas também representa uma perda considerável de energia. Segundo um relatório redigido pelo Tribunal de Contas em março, as nove maiores empresas russas queimaram em 2009 carca de 20 bilhões de metros cúbicos de gás, ou seja, o equivalente à quantidade de gás vendido pela Rússia à Itália a cada ano.
Névoa tóxica
Em janeiro de 2009, o governo russo deu às empresas prazo até 2012 para utilizarem 95% do gás saído dos poços de petróleo (que é a norma para as empresas ocidentais), prevendo multas para aquelas que não cumprirem a determinação. Entretanto, o jornal financeiro “Vedomosti” constatava há alguns meses que “até hoje, o governo russo não conseguiu obrigar as empresas petroleiras a realizar os investimentos necessários” para pôr um fim à queima de gás.
Com os incêndios, as autoridades foram obrigadas a encarar um outro problema, ignorado durante anos, causado pelas antigas turfeiras. Concentradas nas regiões do centro e ao redor de Moscou, elas foram o principal foco de incêndio (como em 1972 e 2002). Foi por causa das turfeiras e de sua combustão lenta e profunda, impossível de controlar, que a capital russa se viu recoberta por uma névoa tóxica e densa.
“Todas as janelas ficam abertas, e a fumaça é tão espessa nos corredores, nos quartos, nas salas de exames, nas salas de cirurgia quanto nas ruas. Somente as janelas da sala de recuperação ficam fechadas, mas ali domina um cheiro de queimado, bem como um fedor devido ao apodrecimento dos curativos, causado pelo calor ambiente: 40 graus centígrados”, escreveu anonimamente na internet um médico moscovita, no pior momento dos incêndios.
As turfeiras secas, não exploradas desde a época soviética, representam uma reserva enorme de carbono pronta para se consumir com qualquer faísca, ainda mais que os canais de inundação não funcionam, uma vez que as bombas de água “foram todas roubadas”, contou Viktor Shurupov, chefe da Defesa Civil de Shatura (periferia de Moscou), à revista “New Time”.
O governo agiu rápido, liberando 300 milhões de rublos (R$ 17 milhões) para inundar as turfeiras. Parece ser a solução menos custosa e mais eficaz para prevenir os futuros incêndios. Mas há quem seja contra, como o governador da região de Tver, Dimitri Zelenine, que declarou recentemente à “Vedomosti” que seria mais sensato cedê-las a empresas privadas para que estas as explorem e garantam sua manutenção.
(Le Monde, UOL Notícias, EcoDebate, 25/08/2010)