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transgênicos
2010-08-23 | Tatianaf

Autor de vários blogs sobre engenharia e legislação de alimentos, o professor Luiz Eduardo de Carvalho é comumente acusado de ser “do contra”. Ativo participante de todos os debates importantes em torno dos alimentos, ele está sempre pronto para apontar as questões políticas complexas por trás de decisões que parecem resolvidas. Uma delas é a rotulagem dos transgênicos, um dos temas mais polêmicos da atual política brasileira. Carvalho falou com ÉPOCA por telefone sobre os bastidores da aprovação do símbolo de alerta nas embalagens de alimentos.

ÉPOCA – Os defensores da rotulagem dos transgênicos dizem que ela é importante para facilitar as escolhas do consumidor.
Luiz Eduardo de Carvalho -
Mas as pesquisas mostram que o consumidor nem está prestando atenção. O que deu errado? Essa questão da rotulagem é política e cultural. Não tem nada a ver com alimentos ou com a agricultura. A verdade é que é impossível rotular de acordo com a norma. Não existe como diferenciar um produto do outro, mercadologicamente. Imagina se a indústria vai se segregar entre produtos transgênicos e não transgênicos, para atrapalhar as vendas? Pelo menos uma pessoa no Greenpeace e duas no Idec sabem do que estou falando, mas isso não é posto na mesa. Essas pessoas que são contra os transgênicos não têm argumentos toxicológicos, não têm comprovação de que o transgênico mata ou engorda, nem de que não mata, então acabaram focando na bandeira da rotulagem.

ÉPOCA – Por que foi decidido usar um símbolo na embalagem dos alimentos, se isso nunca tinha sido feito com outros ingredientes com potencial para prejudicar a saúde de algumas pessoas?
Carvalho -
O símbolo é fruto de uma negociação política. Ele não simboliza apenas os transgênicos. Ele é simbólico de outras coisas também. Foi uma concessão para não ser cumprida. Veja, não existe a cultura de usar símbolos na rotulagem de alimentos. Na Europa, tentaram aprovar uma rotulagem que usaria a linguagem do semáforo para sinalizar se o alimento engorda ou não. Não aprovaram. Se tivéssemos essa cultura, se todo alimento tivesse uma simbologia, aí tudo bem usar o triângulo amarelo. Mas numa sociedade de consumo que nunca usou símbolos, não dá.

ÉPOCA – Como então identificar os alimentos transgênicos?
Carvalho -
Não existe alimento transgênico. Isso é uma invenção da mente humana, é uma criação semântica. Materialmente, não existe. O que é material, concreto, são os organismos transgênicos. Existe soja transgênica, salmão transgênico, milho transgênico, batata transgênica. O que existe são organismos vivos transgênicos. Alimento não é concreto. Alimento já um conceito idealizado pela mente. Pra mim, bife de fígado não é alimento, porque eu não como bife de fígado. Quando você diz alimento, começa a incluir a manteiga, óleo de soja, margarina, maionese, pão de queijo. Nada disso é organismo. Organismo é a soja, é o milho. Esses têm gene. Posso modificar o gene deles. Margarina, pão de queijo e pizza não têm gene. Por isso essa história vira uma discussão de maluco.

ÉPOCA – A norma da rotulagem é equivocada?
Carvalho -
Eles rotularam o óleo de soja. Mas nem esse dá para saber se é transgênico. É muito difícil saber. E uma coisa é o óleo de soja, que é puro. Outra coisa é uma sopa desidratada, que tem muitos ingredientes. Como analisar os DNAs de todos os ingredientes para achar qual é da soja e qual é transgênico? Por isso é impossível rotular.

ÉPOCA – O que deveria ser rotulado?
Carvalho -
Eu considero alimento transgênico todo alimento que contiver um organismo transgênico. Por exemplo, milho de pipoca. Esse pode ser transgênico. Filé de salmão também. Salmão é um peixe, é um organismo, e por acaso também é um alimento. Arroz, feijão, soja, salmão e pipoca são alimentos e ao mesmo tempo são organismos. Agora, todo alimento que tiver um ingrediente que foi extraído de um organismo transgênico, trazendo ou não o gene junto com ele, também será considerado transgênico e será rotulado. Aí entram o óleo de soja, a margarina e até os aditivos a base de soja e de milho. E nessa definição entrariam também as enzimas. O coalho do queijo é expelido por uma bactéria transgênica. As enzimas do pão também são transgênicas. Mas como vamos rotular tudo isso? É uma provocação que eu faço, essa definição. É de propósito. Ela está correta, mas é uma definição política também. E, politicamente, optaram por isentar as enzimas da rotulagem. As enzimas são classificadas como coadjuvantes tecnológicos. Você vai ver o rótulo do pão de forma e ele não diz nada de enzima transgênica, porque todos os aditivos usados no pão estão isentos de rotulagem. O pão é ou não é transgênico?

ÉPOCA – É?
Carvalho -
No fim das contas, a rotulagem é meramente um posicionamento de mercado. O fabricante de margarina que decidir rotular como transgênico, sendo a margarina transgênica ou não, vai competir com quem não rotular, ou com quem rotular “livre de transgênicos”. Quem é que vai vender? Quem rotular direito não vai vender. A legislação é cínica e hipócrita. E é negociada.

ÉPOCA – Como assim, negociada?
Carvalho -
O Idec e o Greenpeace queriam impedir a aprovação do plantio da soja transgênica, mas perderam a briga. Quem ganhou tinha de ceder alguma coisa, uma ilusão qualquer. Então partiram para a negociação da rotulagem. Nessa briga, venceu a rotulagem, porque de rotular todo mundo era a favor. O Lula era a favor. A Monsanto era a favor. A questão então era: rotular o quê? Aí a luta foi transferida para outra arma: a definição do que é transgênico. Toda a briga passou a ser em torno de quais produtos seriam rotulados, e como. Como quem ganhou a briga tinha de ceder alguma coisa, cederam o triângulo: ‘Vamos triangular, depois a gente não triangula nada, ou põe bem pequeno, faz um negócio difuso.’ E fizeram também o ridículo de mandar rotular como transgênico todo animal que comer ração transgênica. Isso está na lei, mas é uma brincadeira. Mais da metade da soja plantada no Brasil é transgênica. Quem está comendo essa soja? Ou é você, ou é o porco ou é a galinha. Os animais estão rotulados como transgênicos? Não.

ÉPOCA – Existe algum porco rotulado?
Carvalho -
Em algum momento eu vi uma briga do Greenpeace tentando rotular a ração. Os alimentos humanos não eram rotulados, mas o alimento dos animais teria de ser. É uma piada. Mas o produtor se perguntava: como é que eu vou rotular meu porco como transgênico se a ração que eu compro não tinha nada no rótulo? Então você come margarina sem rótulo, mas o porco come tudo rotuladinho. Mas também não rotularam a comida do porco, portanto o dono do porco se recusa a rotular.

ÉPOCA – E como foi definido o mínimo de 1% de ingrediente transgênico para a rotulagem? Como ele é calculado?
Carvalho -
Eu fiz uma tabela para comparar o que seria transgênico no governo Fernando Henrique e o que é transgênico no governo Lula. No governo Fernando Henrique, havia o limite de 4% de transgênico para rotular. Na época, não era permitido plantar soja transgênica no Brasil, e a soja transgênica que entrava no mercado era contrabandeada. No governo Lula, mudou a regra. Determinaram que o limite seria de 1%. Aparentemente, a regra ficou mais rigorosa. O The Guardian publicou que o governo Lula é mais rigoroso. Tudo mentira. No governo FHC, era 4% para cada ingrediente. No governo Lula é 1% no produto final.

ÉPOCA – E que diferença isso faz para o consumidor?
Carvalho -
A diferença é se o consumidor quer um mundo de grandes empresas, de grandes sementeiras, com um orçamento único na agricultura, grandes corporações de um dono só. É disso que estamos tratando. Em nenhum momento estamos tratando de comida. Até agora nenhum estudo mostrou que a soja transgênica faz mal. Os transgênicos são uma conquista da inteligência humana, é um avanço da ciência. É fantástico o cérebro conseguir entender o que é o genoma e intervir nele. É uma conquista enorme da civilização. Eu não sou contra. Mas não quero comer. Eu crio um paradoxo quando digo isso, mas é meu direito. Tenho nojo, não quero. Não precisa provar que faz mal. Não como e pronto. Tenho direito de ter nojo, e vão ter de rotular por causa do meu nojo. É assim que a sociedade funciona. Não se pode rotular só o que mata.

(Revista Época, 21/08/2010)


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