O noticiário dos últimos dias sobre o projeto de implantação da Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, torna ainda maior a perplexidade diante da indiferença, surdez mesmo, com que os órgãos do governo federal envolvidos no projeto recebem as numerosas exigências de esclarecimentos que a sociedade tem feito.
Na sexta-feira da semana passada, enquanto índios, ribeirinhos, pequenos agricultores e pescadores, além de especialistas da Universidade do Pará, manifestavam sua inconformidade com o projeto - e chegavam, os acadêmicos, a afirmar que ele não é necessário nem mesmo em termos de energia -, anunciava o Ministério de Minas e Energia (amazônia.org, 13/8) que o contrato de concessão para a "usina de 11.233 MW" pode ser assinado ainda este mês, ou seja, antes mesmo que o Ibama conceda a licença de instalação. Também se anunciava que o contrato de concessão com 11 construtoras - agora incluindo três das maiores do País - "terá seu valor reduzido em cerca de R$ 4 bilhões, para R$ 15 bilhões" (Estado, 15/8). Ou seja, o valor estimado da obra já passou de R$ 9 bilhões para R$ 15 bilhões, para R$ 19 bilhões, para R$ 30 bilhões e agora retorna a R$ 15 bilhões. Que precisão! Quanta confiabilidade desperta no cidadão que paga impostos e no contribuinte dos fundos sociais que bancarão os custos!
Em artigos anteriores neste espaço (25/9/2009 e 5/2/2010, entre outros) já foram mencionados muitos argumentos que questionam a obra. A começar pela sua desnecessidade, deduzida de estudo da Unicamp/WWF que mostra a possibilidade de o Brasil poder ganhar metade da energia que consome hoje se fizer programas de conservação e eficiência energética, redução das perdas nas linhas de transmissão e repotenciação de geradores antigos. A subestimação dos custos ambientais, sociais e financeiros da obra na licitação. A superestimação - apontada por um painel de 38 especialistas - do potencial da usina, onde a produção poderá cair para apenas 1 mil MW na estiagem. A destinação de praticamente toda a energia ao setor de eletrointensivos exportados, que exige subsídios. O próprio Ipea, que pertence ao governo federal, em seu Boletim Regional, Urbano e Ambiental de julho de 2009, questiona projetos como esse, que não contribuem "para reduzir desigualdades regionais e sociais, não internalizam todos os custos, contribuem para o inchaço de cidades desprovidas de infraestruturas, para o desflorestamento, para perdas da diversidade biológica e cultural, para redução do fluxo hídrico, para a geração de contaminantes do solo, da água e do ar".
Nada disso comove. O ex-ministro de Minas e Energia Edison Lobão chegou a atribuir a "intenções demoníacas" tais questionamentos. E o presidente da Empresa de Pesquisas Energéticas, Maurício Tolmasquim, continua a afirmar (Estado, 28/7) que o País precisa agregar 63 mil MW à sua potência instalada, em cinco anos - embora o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues diga (Estado, 11/6) que o Brasil desperdiça energia equivalente a três usinas de Belo Monte com o não-aproveitamento do bagaço de cana.
Agora, mais um grave questionamento. A edição de junho/julho de 2010 do Jornal do Instituto de Engenharia de São Paulo traz, em duas páginas, uma "Opinião" na qual afirma que "a construção do referido aproveitamento hidrelétrico está longe de ser do interesse nacional". Com base em números expostos pelo engenheiro Walter Coronado Antunes, ex-presidente da Sabesp e ex-secretário de Obras e Meio Ambiente do Estado, mostra o boletim que em anos de vazões mínimas, nos meses de julho a dezembro, estas podem ficar entre 444 m3 e 1.417 m3 por segundo; nos anos de vazão média, nesses mesmos meses, elas podem situar-se entre 1.066 m3 e 3.730 m3 por segundo.
Surge o primeiro problema, já que é preciso manter vazão mínima de 1 mil m3/segundo no leito original do Rio Xingu para "assegurar a sobrevivência das populações ribeirinhas indígenas e não indígenas ali radicadas". Para tanto será indispensável que funcionem seis máquinas da casa de força complementar, com o uso de vazão total de 1.920 m3/segundo. Mas as vazões previstas tanto para anos de vazão média quanto de vazão mínima não asseguram a manutenção do fluxo mínimo do rio necessário para aquelas populações. Chega-se a um quadro complicado: "Nos anos de vazões médias a casa de força complementar, nos meses de agosto a novembro, será obrigada a gerar energia com todas as suas turbinas, a plena carga, para manter as vazões aceitáveis ambientalmente no trecho morto da Grande Curva do Rio Xingu"; nesses meses "a casa de força principal não terá água para funcionar nenhuma turbina (estarão parados os 18 grupos de turbinas-geradores, no total de 11 mil MW)"; por isso, "nos anos em que ocorrerem vazões mínimas, Belo Monte será desastroso; durante oito meses a água não será suficiente para acionar a plena carga nem mesmo a casa de força complementar; ficarão paradas todas as unidades geradoras da casa de força principal, com 11 mil MW de potência instalada, durante esses oito meses"!
E a "conclusão final" é de que, com o custo de implantação de Belo Monte chegando a pelo menos três quartos do custo de implantação da Usina de Itaipu, mas gerando "apenas um quarto da produção anual de Itaipu (...), não é possível viabilizar-se a construção do aproveitamento hidrelétrico de Belo Monte, em razão da sua baixíssima produtividade, sem que o Tesouro Nacional seja levado a investir, a fundo perdido, por meio das empresas públicas que compuserem a parceria público-privada que for vencedora do leilão e operação do pior projeto de engenharia da história de aproveitamentos hidrelétricos do Brasil e talvez da engenharia mundial. Uma vergonha para nós, engenheiros".
É grave, muito grave. Não podem continuar sem resposta os questionamentos. Principalmente este, partindo de um órgão que expressa pensamento da engenharia.
(O Estado de S.Paulo, 20/08/2010)