“Os índios criaram uma nova visão sobre a própria vida, deixaram uma síndrome de autoflagelação e complexo de inferioridade e recuperaram o orgulho de pertencer àquele povo.” O pensamento é do bispo de Altamira, no Xingu, Dom Erwin Kräutler, uma das principais vozes a favor dos povos indígenas na América Latina. Em entrevista concedida à IHU On-Line, concedida pessoalmente, ele falou sobre a reafirmação da identidade indígena. “Eles, que eram sempre pisados, ergueram a cabeça e reconheceram que são filhos dessa terra e ninguém pode tirar isso deles.”
O bispo de Altamira (Pará), nascido na Áustria, chegou ao Brasil na década de 1960 e logo abraçou a causa dos indígenas. Na última semana, ele esteve na Unisinos para um ciclo de palestras. Dom Erwin é presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como é a atuação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Brasil, atualmente?
Dom Erwin Kräutler – O Cimi foi fundado em 1972 por iniciativas de bispos que tinham povos indígenas em suas áreas eclesiásticas. Chegaram à conclusão de que a atividade pastoral junto a eles precisava ser assumida, ao invés de cada religioso fazer as coisas por sua conta. Temos de ter linhas, diretrizes e prioridades comuns. Naquela época, o Estado também tomou iniciativas, através do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que não agradava sempre à Igreja. Hoje, basicamente, o Cimi tem duas finalidades: uma delas é a presença real. Estamos no meio dos indígenas, no lugar onde acontece a história desse povo, através dos nossos missionários.
O segundo ponto é a sensibilização da sociedade brasileira, que tem uma vertente no aspecto internacional. Não estamos apenas nos restringindo à causa indígena dentro do Brasil, mas na América Latina e no mundo inteiro. Entendemos que os povos indígenas do Brasil são irmãos dos índios de toda a Terra, que têm os direitos garantidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Veiculamos informações para o mundo inteiro. Normalmente o contato é feito com a imprensa alternativa, embora, volta e meia, apareça algum fato relacionado aos povos indígenas na grande mídia.
IHU On-Line – E entre as prioridades do Cimi está a violência contra os índios...
Dom Erwin Kräutler – É o principal assunto. Estamos lutando contra a violência, mas é preciso perguntar o que há por trás dela. Não é como o caso de um cachaceiro que mata o outro em uma briga de bar. É na terra ou na falta dela que se fundamenta todo tipo de agressão contra os indígenas. São expulsos de suas terras, que acabam usurpadas. Quando falamos em violência, falamos de defesa dos direitos constitucionais, da terra, da cultura, da maneira de ser.
IHU On-Line – O senhor pode nos falar sobre o caso de um povo indígena recém-contatado que pode ser levado para uma localidade do Maranhão?
Dom Erwin Kräutler – Sobre esse caso específico não tenho nenhum detalhe no momento, o Brasil é muito grande. O Cimi é contra a transferência compulsória de um povo. Isso foi feito algumas vezes, inclusive durante a construção da Transamazônica, e, no geral, os integrantes acabam morrendo. São arrancados de seu habitat e não conseguem se adaptar. Faz parte da filosofia deles: “É a terra onde me criei, onde nasci, berço de nossos mitos e ritos, lugar dos nossos ancestrais.” E acabam morrendo, como os negros que viram escravizados da África, de uma saudade patológica.
Além disso, eles não têm imunidade contra nenhum surto de doença. Mas existem na Amazônia povos encontrados recentemente e outros com contato esporádico, dos quais não se sabe praticamente nada. Ainda é impossível dizer quais as principais características e como vivem. O fato é que, quando se faz uma descoberta dessas, é um “deus nos acuda” nos meios que estão querendo se apropriar daquelas terras e das riquezas naturais existentes ali. O índio se torna um obstáculo, um empecilho e tem de ser eliminado. Para esses gananciosos e ambiciosos, índio é bicho do mato e não possui direitos.
IHU On-Line – Como é a relação entre Cimi e Funai?
Dom Erwin Kräutler – É complicada. O Cimi tem sua visão, filosofia, diretrizes, teologia e plano pastoral. A Funai é o órgão executor do governo federal e não tem filosofia própria, mas sim aquela que o atual presidente adota. Se atrai ao governo salvar os índios, é isso que a Funai se esforça para fazer. Se, no fundo, os mandantes dizem “tomara que os índios desapareçam”, a Funai também não vai se preocupar muito. Foi sempre assim. No tempo dos militares prevalecia a “incorporação dos silvícolas à identidade nacional”. Depois veio a nova Constituição, mas ficou só no papel. Nós não exigimos nada mais que o que está na Constituição, que é a carta magna do país, essa é a nossa luta.
IHU On-Line – Às vésperas das eleições, quais as expectativas do Cimi quanto aos próximos anos? Algum candidato se mostra mais favorável às causas indígenas?
Dom Erwin Kräutler – Os candidatos que aparecem mais à frente nas pesquisas não darão passos significativos, porque índio não atrai votos. Nenhum traz o compromisso de abraçar as causas indígenas. Nossa luta vai continuar. Os minoritários, que aparecem atrás, cutucam e colocam esse tema em destaque. Mesmo que não ganhem, vão aproveitar o palanque.
IHU On-Line – Como o senhor vê a situação dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul?
Dom Erwin Kräutler – É terrível, a pior do Brasil. Foram expulsos, tiveram suas terras tomadas. Estão à beira da estrada ou em reservas tão diminutas que não há como sobreviver, estão encurralados. Instalou-se um pânico coletivo que chega ao ponto de os índios não quererem mais viver, apelando ao suicídio.
IHU On-Line – Essa prática tem crescido entre os indígenas?
Dom Erwin Kräutler – Não posso dizer que tem crescido, mas são muitos os casos, inclusive entre os jovens. Eles não têm perspectivas para sobreviver como povo.
IHU On-Line – E os índios gaúchos, como se encontram?
Dom Erwin Kräutler – O Rio Grande do Sul também tem seus problemas ligados às causas indígenas. Há gaúchos sensíveis, mas também aqueles que rezam a mesma cartilha de que índios são bugres, vagabundos, cachaceiros, mas nunca se perguntam: “o que aconteceu com esse povo?” De modo geral, tudo isso está relacionado à terra. Quando aqui se levanta questões a respeito da terra indígena, há muita contrariedade e hostilidade. Novamente dizem que os índios não precisam de tanto espaço, pois não produzem. A ideia do branco, da sociedade predominante, é que só tem direito de viver quem produz, o resto é supérfluo ou descartável. E os indígenas entram nessa categoria.
IHU On-Line – Ao mesmo tempo em que há todo sofrimento entre os índios, o senhor afirma que houve uma reafirmação da identidade indígena. Como ocorre isso?
Dom Erwin Kräutler – Em virtude dessa marginalização contra os povos indígenas, eles entranharam essa afirmação de que “são menos gente, uma categoria de pessoas que não têm direito a nada.” Entretanto, de repente, surgiu uma nova época em que eles caíram na real e se questionaram: “a final de contas, quem já estava aqui quando os outros chegaram? Quem tem cultura, uma língua e algo para contribuir para o mundo como um todo, inclusive, para o Brasil?” Criaram uma nova visão sobre a própria vida, deixaram uma síndrome de autoflagelação e complexo de inferioridade e recuperaram o orgulho de pertencer àquele povo. Os índios que eram sempre pisados ergueram a cabeça e reconheceram que são filhos dessa terra e ninguém pode tirar-lhes isso.
IHU On-Line – E nesse momento, o que o senhor tem a falar sobre Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler – Se esse projeto for levado adiante, o Presidente Lula será lembrado como o presidente que acabou com os povos indígenas do Xingu. Não é verdade que está planejada apenas uma barragem, haverá outras. Todas as áreas indígenas do Xingu serão invadidas e os povos não vão sobreviver. Esse decreto é uma falácia. Quem deu o tiro de largada para essa monstruosidade será o responsável pela morte desses povos diante da história do Brasil e do mundo.
(IHU-Unisinos, 15/08/2010)