As empresas que produzem energia elétrica para a venda no “mercado livre” começaram a poder utilizar o mecanismo de desapropriação por interesse público durante a construção de usinas hidrelétricas, que desalojam forçadamente as populações atingidas pelas obras. Isso é o que explica o advogado do setor de direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Leandro Scalabrin. O mecanismo teria começado na era das privatizações do setor elétrico no país, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Por outro lado, de acordo com o advogado, não houve nenhuma medida legislativa, no sentido de definir o conceito legal de população atingida por barragem, os direitos das populações desalojadas e afetadas pelas hidrelétricas, ou no sentido de criar um órgão estatal responsável pela promoção das indenizações. Isso permitiu, segundo ele, que o poder de realizar todos estes atos ficasse nas mãos dos investidores, o que se tornou “a principal causa de violações de direitos humanos na construção de barragens no Brasil e de impunidade das empresas”. Tais informações lançam luz aos caminhos que desembocaram no atual tratamento que a GDF/Suez oferece em relação às comunidades atingidas pela usina de Jirau, no rio Madeira.
A 120 quilômetros de Porto Velho (RO) situa-se o distrito de Mutum-Paraná, que desaparecerá por causa do funcionamento da hidrelétrica. Desde o dia 14 de junho até o início de julho, catorze das 118 famílias do distrito se instalaram numa nova cidade planejada que será chamada de Nova Mutum.
A localidade comportará 1600 residências e equipamentos públicos como escola, posto de saúde, prédios para administração pública municipal e estadual e terminal rodoviário. O consórcio de Jirau garante que os moradores terão uma vida boa. Mas não é o que pensa o líder comunitário Rovaldo Herculino Batista. “Lá vai ser pior que aqui, que tem garimpo pelo menos; lá não tem nada [para trabalhar]”, argumenta o morador de Mutum-Paraná.
Além da casa em Nova Mutum, que custaria R$ 50 mil, Rovaldo informa que o consórcio Energia Sustentável, comandado pela empresa franco-belga GFD/Suez, também pode oferecer uma indenização que chega no máximo a R$ 35 mil. O agricultor, entretanto, revela que o consórcio de Jirau assedia os moradores de Mutum-Paraná em meio a uma forte pressão psicológica. “Eles sempre batem na tecla de que, se nós ficarmos aqui e não aceitarmos os acordos, não teremos nem energia, nem saúde e nem educação”, conta.
“Infelizmente, muita gente aceitou essa micharia e fizeram o acordo”, diz Rovaldo. Dentre os que não aceitaram está José Silvério Cardoso, também conhecido como Negão. “Fizeram uma proposta máxima de R$ 21.900 pela minha casa aqui em Mutum-Paraná e depois ficou uma dificuldade falar com eles”, destaca Negão, que terá 21 alqueires inundados pelas águas da barragem de Jirau. “Eu quero o direito de morar com minha mulher e minha filha onde eu quiser”, pondera.
Ao lado de Negão, ainda existem mais 56 famílias dispostas a negociar, mas que não aceitam os questionáveis termos impostos pelo consórcio. “Posso até estar pessimista, mas acredito que não vai dar certo; eu sei de muita gente que já está querendo vender essa casa em Nova Mutum”, revela Rovaldo.
Entre os dias 13 e 17 de maio, por sinal, a transnacional GDF-Suez, que terá a concessão da usina hidrelétrica de Jirau por 35 anos, foi condenada pelo Tribunal Permanente dos Povos (TPP), em Madri (Espanha), ao lado de outras empresas que integram a construção do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, como o Banco Banif, de Portugal, e o Banco Santander, da Espanha, por cometer “graves, claras e persistentes violações dos princípios, normas, convênios e pactos internacionais que protegem os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais das pessoas”.
(Por Eduardo Sales de Lima, Mab, 12/08/2010)