Dom Erwin Kräutler chegou "moço" ao Brasil, como ele mesmo disse, aos 26 anos. E mesmo depois de mais de 40 anos em solo brasileiro, ele demonstra com muita energia a sua mocidade.
Foi isso que os participantes de sua palestra "Belo Monte, impactos socioambientais", parte do evento Amazônia em Debate, organizado do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e parceiros, realizada na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, na Unisinos, em São Leopoldo, puderam perceber.
Tendo chegado ao Rio Grande do Sul em uma das semanas mais frias dos últimos tempos, com registro de neve em diversas cidades do Estado, Dom Erwin não podia deixar de brincar, com muito bom humor, com o frio que passou ao chegar em solo gaúcho, depois de sair do clima tropical de Altamira, no Pará, onde é bispo da Prelazia do Xingu.
"Nunca sofri tanto frio quanto no Brasil", afirmou o prelado, que nasceu na Áustria. E esse também foi o "gancho" para entrar no tema da tarde de debate: "Com a hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, a promessa é de que todos os gaúchos vão ter calefação em casa", brincou.
Dom Erwin Kräutler retomou, assim, um pouco da história de sua luta em defesa daquilo que chamou de "macrorregião da Amazônia", que, afirmou, não pode se confundir com outras macrorregiões do país, e por isso deve ter suas peculiaridades e riquezas preservadas e defendidas.
Segundo ele, os maiores problemas políticos na Amazônia iniciaram no começo dos anos 70, com o projeto e a execução da construção da rodovia Transamazônica (ou BR-320), terceira maior rodovia do Brasil, com 4.000 km de comprimento, que passa pela Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão, Tocantins, Pará e Amazonas.
O objetivo da obra, em plena época da ditadura, era contribuir para o que o governo de exceção chamava de "integração nacional". Porém, para se ter uma ideia do que a obra significou concretamente para as populações locais, Dom Erwin relembrou alguns outros "apelidos" da rodovia: "Transamargura" e também "Transmiséria".
O marco inicial da obra foi no dia 9 de outubro de 1970, quando o ditador militar Emílio Garrastazu Médici deu início ao programa governamental de derrubar a Floresta Amazônica para a execução da obra. Na cerimônia para marcar o início das obras – à qual Dom Erwin pôde assistir "de corpo e alma", pois era "padre novo" –, havia uma placa de bronze encrustada no tronco de uma castanheira derrubada, conhecida como a "rainha da selva".
Com esse símbolo (que popularmente ficou mais conhecido como o "pau do presidente", lembrou o bispo), essa cerimônia à Transamazônica foi o primeiro passo da "arrancada histórica para a conquista desse gigantesco mundo verde", afirmou.
Como afirmou Médici, em uma famosa frase, buscava-se assim, com o alcance da Transamazônica, entregar "terras sem homens (a Amazônia), para homens sem terra (o Nordeste)". Porém, afirmou Dom Erwin, a Amazônia, e especialmente o Xingu, nunca foi terra sem homens, sempre foi povoada pelos povos indígenas e também pelos ribeirinhos.
Na época da ditadura, no entanto, nada se falou sobre os povos que habitavam aquelas terras. "Para o presidente da República, se houvesse índios, deviam ser ignorados", sintetizou o bispo do Xingu. Assim, a migração foi-se dando a partir do Sul, Sudeste e Centro do país rumo à Amazônia.
Na inauguração do primeiro trecho da obra, em abril de 1972, Médici lembrou que assim se cumpria a "construção de um grande e vigoroso país". Porém, essa integração nacional também incluía cortar ao meio os grandes rios amazônicos. Sem contar que, logo após a inauguração da Transamazônica, afirmou Dom Erwin, convocou-se o Consórcio Nacional de Engenheiros Construtores (CNEC), que determinou a viabilidade de construção de cinco hidrelétricas na região.
Com isso, resumiu Dom Erwin, Médici e seu governo decidiram "soberanamente pela destruição da Amazônia". E foi aí que o bispo traçou diretamente um paralelo com Lula, exatamente na decisão de construção da hidrelétrica de Belo Monte.
Belo Monte: "uma monstruosidade"
"Lutamos há 30 anos contra essa monstruosidade", afirmou. E criticou a forma prepotente de Lula na defesa da construção de Belo Monte, que, segundo Dom Erwin, "ultrapassa a prepotência dos militares".
Segundo Dom Erwin, Lula, durante a campanha, manifestou-se contra Belo Monte, assim como outros candidatos. Depois de eleito, passou por uma "surpreendente metamorfose camaleônica", afirmou, por meio da qual começou a defender a hidrelétrica como única saída para salvar a pátria do apagão e de um colapso de toda a economia.
Para se ter uma ideia, a hidrelétrica de Belo Monte será a maior usina hidrelétrica inteiramente brasileira (já que Itaipu encontra-se na fronteira entre o Brasil e o Paraguai). Em nível mundial, será a terceira em tamanho. Irá ocupar um total de 1.000 km2, sendo que 668 km2 serão de áreas inundadas, incluindo um terço da cidade de Altamira, conforme o edital do leilão, lembrou Dom Erwin. A produção estimada é de pouco mais de 11 mil megawatts. Porém, afirmou o bispo, essa produção irá ocorrer na época das cheias, ou seja, em apenas 2-4 meses por ano. Na maior parte do ano, a produção cai para 1.100 megawatts.
Por isso, questionou: "Quem, em sã consciência, vai investir 30 bilhões de reais em uma usina hidrelétrica que só por alguns meses por ano pode trabalhar com toda a força e nos outros meses cai para um quinto de sua produção, durante o verão tropical?". Segundo ele, assim, Belo Monte será apenas o primeiro passo para a construção de outras barragens que serão necessárias para manter o nível da produção.
"O Xingu será sacrificado", declarou. "Belo Monte tem como objetivo explorar intensivamente todas as riquezas naturais do solo e do subsolo da Amazônia, seus recursos minerais, naturais e hídricos para satisfazer as demandas internacionais", criticou. Para ele, a hidrelétrica de Belo Monte "é concebida pelos interesses do mercado internacional".
A Amazônia, afirmou, é um enorme acervo de biodiversidade ainda não totalmente explorado. Além disso, o projeto não contempla nenhum palmo de chão destinado às famílias desalojadas. "Como Lula será capaz de cuidar do nosso desenvolvimento se não respeita as comunidades ribeirinhas e quilombolas?", questionou Dom Erwin.
"E lá vem a Dilma Roussef", brincou novamente, criticando sua postura de afeição a um projeto que vem desde a ditadura que a candidata do PT ajudou a combater. Dom Erwin criticou a defesa de Belo Monte por parte de Dilma como um projeto de energia elétrica que respeita o meio ambiente. "Como ela pode provar que esse projeto pode respeitar o meio ambiente? Eu gostaria que a Dona Dilma explicasse o que entende por respeitar o meio ambiente", criticou.
Falácias
Por outro lado, afirmou, diz-se que a usina vai trazer o progresso e milhares de empregos. "O sonho do progresso eu já conheço desde a época da Transamazônica. Algumas pessoas enriqueceram. Mas esse progresso não chegou", defendeu. Além disso, a cidade de Altamira "não tem a mínima estrutura para receber essas pessoas" e todos os migrantes que se deslocarão para a região.
Referindo-se aos defensores de alto escalão da obra, disse: "Esses tecnocratas nem sabem o que vai acontecer, porque não está em jogo o futuro de suas famílias e de sues netos. Vai-se improvisar algumas medidas, e depois vai-se entregar o povo à sua própria sorte. Existe algum único exemplo no Brasil que prove o contrário?".
Relembrando seus dois encontros com o presidente Lula, no ano passado, Dom Erwin citou a declaração que o presidente lhe fez, em tom de confidência: "Dom Erwin, uma coisa eu lhe digo: jamais vou entregar esse projeto goela abaixo a quem quer que seja. Belo Monte só se tornará realidade se for de proveito para todos os brasileiros e brasileiras".
Porém, afirmou Dom Erwin, Lula nunca se dispôs a ouvir cientistas de ponta do Brasil e dos centros de pesquisa do setor energético para ver outras opções de solução energética, em vez da enorme devastação necessária para a construção da hidrelétrica. Ele contou que, no sul da Alemanha, apesar do frio, da neve e dos dias nublados, todas as casas possuem placas de energia solar. "Na Amazônia – comentou –, temos sol das 6h às 18h. Por que não se investe nisso?", questionou.
Por outro lado, o governo não sabe com precisão o impacto da hidrelétrica. "Até hoje não se sabe quantas pessoas serão retiradas de suas moradias. Não há cálculos exatos. Não se sabe quais ruas serão alagadas. Os estudos são insuficientes, imperdoavelmente omissos na área social. Essas pessoas [atingidas] não são conhecidas em Brasília, mas nós sabemos quem elas são", disse.
Segundo Dom Erwin, a mesma coisa está acontecendo em Tapajós. "O bispo está subindo pelas paredes", afirmou. "Outro mundo é possível e necessário. Queremos outro Brasil. As pessoas querem um país diferente, justo e fraterno. E, enquanto tivermos fôlego, vamos gritar", disse.
(Por Moisés Sbardelotto, IHU-Unisinos, 06/08/2010)