Um paraíso intocado de 32km², com imensas dunas móveis, manguezais, nascentes de água doce e extensa área de marinha no litoral oeste do Ceará poderá ser ocupado por um complexo turístico formado por 13 hotéis, cinco resorts, três campos de golfe e uma marina — a Cidade Nova Atlântida. A terra está em disputa entre empresários espanhóis e uma comunidade indígena tremembé que reivindica a área. Os europeus sustentam que compraram o terreno de um fazendeiro e argumentam que os índios não seriam realmente indígenas. Os empreendedores já tiveram o apoio do governo e de deputados do estado, mas hoje enfrentam o descrédito do poder público. A Fundação Nacional do Índio (Funai) afirma que deverá publicar, até o fim do ano, o relatório que caracteriza a presença indígena na região e delimita a área dos tremembés das comunidades Buritis e São José. Reportagem de Lúcio Vaz, no Correio Braziliense.
O projeto é classificado pelo secretário estadual de Turismo do Ceará, Bismark Maia, como “mera especulação imobiliária”(1). “Não me passa confiança nem segurança”, comentou. Adquirido por empresários espanhóis em 1985, o terreno, então selvagem, foi transformado em área urbana por lei municipal. O advogado do empreendimento, Djaura Dutra, explica a alteração: “Foi necessária porque é uma cidade turística. Então, foi declarada como área urbana para ser preparada, porque a área tem que ser desmatada para a implantação do projeto. Na época, houve um convênio entre a empresa e o município de Itapipoca”. Segundo Dutra, a lei foi sancionada pelo prefeito da época, Gerardo Barroso.
O site do empreendimento mostra a sua localização em cima de imagem de satélite. A área é delimitada por uma linha tracejada amarela que segue mar adentro. “Isso é loucura, é para vender. Isso é propaganda enganosa”, comenta o superintendente da Secretaria de Patrimônio da União no Ceará, Clésio Jean Saraiva. “O Nova Atlântida tem problemas sérios. Existe, inclusive, a possibilidade de demolição por conta da ocupação de área de preservação. Esse pessoal faz os empreendimentos e consegue uma licença ambiental estadual. Quando o Ibama vai lá e constata que tem área de preservação permanente ambiental, tome multa. Aí, o Ministério Público entra com ação civil pública de demolição. É um prejuízo grande”, diz Saraiva.
Quem é o dono?
A área foi comprada inicialmente pelo espanhol Juan Ripoll Mari. Ele registrou a aquisição no cartório de imóveis de Itapipoca em nome da Nova Atlântida Comércio de Imóveis. Até a semana passada, o seu nome constava na Junta Comercial do Ceará como sócio majoritário do empreendimento, com 99,8% do capital. Em 2007, Ripoll foi investigado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) por movimentação financeira atípica. Djaura Dutra afirma que o diretor do empreendimento, atualmente, é o espanhol Xavier Mitats, que representa a empresa espanhola Afirma Grupo Inmobiliario.
O ex-secretário de Turismo de Itapipoca Paulo Maciel, morador da Praia da Baleia, conheceu Ripoll. Segundo ele, as terras foram compradas por quatro espanhóis em 1985. Só Ripoll continua na sociedade. A empresa Afirma teria adquirido as ações dos outros três espanhóis. “O Ripoll tem 30% das ações hoje, e o outro grupo detém o resto”, informa. O secretário Bismark Maia resume a situação: “Ninguém sabe quem é o dono (do empreendimento)”. Maciel explica por que a escritura ainda não foi alterada. “Eles ainda não legalizaram, porque só os 2% dos TBI (Imposto Sobre Transmissão de Bens Imóveis) da prefeitura é uma nota preta. Quando eu era secretário, eles viviam pedindo ajuda da prefeitura.”
Djaura Dutra afirma que o empreendimento não tem pendências ambientais. “Quando peguei a causa, o licenciamento estava aprovado pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Semace). O juiz fez uma vistoria na área e o Ministério Público estava questionando essa questão de dunas e terreno de marinha. Os diretores explicaram que não iriam utilizar esses terrenos para construir nada. Seria uma área para lazer.” Dutra afirmou que não foi preciso pedir o aforamento da área de marinha para o empreendimento: “Aquelas terras não são consideradas de marinha”. Ele lembrou que a linha do preamar (nível máximo de uma maré cheia) é de 33 metros. “Mas, aqui no Ceará, nunca foi demarcada essa linha.”
O professor Jeovah Meireles, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), afirma que os estudos ambientais para a implantação do empreendimento não levaram em conta a presença indígena, os impactos cumulativos, muito menos os custos social, ecológico e cultural às comunidades tradicionais. “Campos de dunas repletos de sítios arqueológicos, reservatórios de água potável e nascedouros de riachos de águas cristalinas serão ocupados por uma elevada densidade de equipamentos hoteleiros. Ao longo do manguezal, lugar de pesca e de coleta de caranguejos, foi projetada a construção de cinco marinas e ancoradouros”, comentou Meireles. Segundo ele, “está em risco o direito à posse e ao usufruto exclusivo dos índios de São José e de Buriti sobre as riquezas naturais de sua terra”.
Manoel Xavier de Lima, 69 anos, está entre os indígenas que reivindicam a posse da terra. Ele sustenta nove filhos com a roça que mantém nas proximidades do Rio Mundaú, com as plantações de coco, banana e manga, além da coleta de frutas, como a siriguela. “Vivo aqui desde que nasci. Tem quem acredite que essa empresa vai trazer progresso e emprego. Mas eles cercaram as terras e querem acabar com as nossas rocinhas”, comentou.
1 – “Sem rastro”
Em julho de 2008, representantes da Comissão de Turismo da Câmara dos Deputados estiveram no local, em companhia dos diretores do Grupo Afirma e do então embaixador da Espanha no Brasil, Ricardo Peidró. A visita foi noticiada num jornal de Fortaleza. Segundo a reportagem, após “sobrevoar a área de 3 mil hectares que abrigará o empreendimento”, os integrantes da comitiva teriam declarado que, “no local, não há rastro algum de povos indígenas”. Após a “visita técnica”, os deputados, os empresários e o embaixador teriam mantido uma reunião “a portas fechadas” com o governador Cid Gomes.
Justiça favorece gringos antes de estudo da Funai
Fundação confirma a presença de povos indígenas na região cearense, mas juiz reconhece grupo espanhol como proprietário dos terrenos em litígio
As comunidades de Buritis e de São José, que reivindicam as terras compradas pelo empreendimento Nova Atlântida, tiveram uma derrota judicial na disputa com o consórcio de empresários espanhóis. Em 29 de julho, o juiz federal Marcos Mairton da Silva, de Sobral (CE), decidiu que as terras onde estão fixadas essas comunidades, no município de Itapipoca, “não podem ser consideradas terras indígenas”. A decisão foi tomada antes da conclusão do relatório da Fundação Nacional do Índio (Funai) que caracteriza a presença de índios na região e delimita a área da terra indígena tremembé a ser demarcada. O projeto turístico tem valor estimado em R$ 2,4 bilhões.
Na sua decisão, o magistrado considerou um ofício encaminhado pela Funai em outubro de 2008, informando que seria formado, a partir de dezembro daquele ano, um grupo técnico para fazer os estudos de identificação e de delimitação daquelas comunidades. “O certo é que, até a presente data, não se tem notícia de que tais estudos tenham se realizado. Ou seja, não há uma posição oficial da Funai declarando que as terras discutidas nesses autos são indígenas”, argumentou o juiz. Em nota enviada ao Correio na segunda-feira, a Funai informou que o relatório de identificação e localização será concluído até o fim deste ano. Mas a fundação apresentou informações sobre a presença dos tremembé na região.
Por enquanto, a Funai diz poder afirmar que o povo indígena tremembé é citado em documentação histórica e em diversas obras do período colonial, que fazem referência à sua presença na extensa região litorânea que segue do Pará ao Ceará, nos séculos 16, 17 e 18. No passado, foram aldeados em missões, no Maranhão e no Ceará, muitas vezes convivendo com outras etnias também aldeadas pelos religiosos. Almofala (distrito de Itapipoca) foi o mais conhecido aldeamento dos tremembé, porém, suas terras acabaram sendo invadidas gradativamente por latifundiários. Contudo, a população indígena continuou vivendo na mesma região, mas somente passaram a reivindicar o reconhecimento oficial de sua identidade étnica a partir da década de 1980.
Limites
A Funai deixou claro que os estudos realizados para a identificação e a delimitação tratam das demandas das comunidades Buritis e São José, mas fez uma ressalva: “Isso não significa que as áreas reivindicadas serão demarcadas em sua totalidade. Os limites e a área total da terra indígena somente serão divulgados após a publicação do relatório no Diário Oficial”.
O juiz federal também utilizou como argumento na sua decisão uma certidão do cartório de Itapipoca declarando que o imóvel em questão “tem filiação de domínio no período de 60 anos”, adquirido por José Galvão Prata em 1976, por compra a Zulmira Souto Carneiro. Esta adquiriu o imóvel em 1973, por herança de Euclides Carneiro da Silveira, que já era proprietário desde 1939, tendo recebido tal propriedade por herança de seu pai, José Maria da Silveira. Segundo tal certidão, o imóvel fora adquirido pelas empresas espanholas em 1980. “O fato é que não se está a tratar de terras devolutas ou de propriedade desconhecida, e sim terras cujo domínio tem a chancela do registro civil há muitas décadas”, diz a sentença.
O magistrado acrescenta que, desde 1988, a área em questão é considerada zona urbana, de acordo com a Lei n° 29/88, do município de Itapipoca. O juiz reconhece que “o direito dos indígenas está previsto na própria Constituição federal, não podendo ser afastado ou restringido por lei municipal”. Mas ressalva que, “para afastar a lei municipal, sob o argumento de que o município declarou urbana uma área indígena, e ao mesmo tempo negar validade a documentos do registro civil, parece-me necessário que o juiz esteja diante de elementos probatórios muito convincentes”. E concluiu: “Nos autos, o que se observa é que a Funai nunca realizou qualquer estudo específico para verificar se aquela área se tratava ou não de terras indígenas”. O Ministério Público Federal no Ceará informou que deverá recorrer da decisão do juiz federal.
(EcoDebate, 06/08/2010)