A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou na semana passada uma resolução afirmando o direito universal à água e ao saneamento. Mesmo com a contestação de mais de 40 países, que se abstiveram na votação, a entidade garantiu o direito para cerca de 884 milhões de pessoas que carecem de acesso à água potável no planeta, dentre as quais mais de 2,6 bilhões não têm saneamento básico. O texto da resolução manifesta profunda preocupação com o fato de 884 milhões de pessoas em todo o mundo não ter acesso a fontes confiáveis de água potável e de mais de 2,6 bilhões não disporem de saneamento básico.
Estudos também indicam que cerca de 1,5 milhão de crianças menores de cinco anos morrem e 443 milhões de aulas são perdidas todos os anos no planeta por conta de doenças relacionadas à potabilidade da água e à precariedade dos serviços de saneamento básico. A questão que se coloca diante de tal situação é: quanto custa garantir o acesso à qualidade de águas para a totalidade da população? Quais os tributos que incidem sobre a exploração da água? A guerra por causa da água é, de fato, uma ameaça possível?
O assunto tem ganhado espaço na mídia, na pauta das empresas e nas legislações. Mesmo assim, essas questões invariavelmente acabam ficando sem resposta. O Brasil está na mira mundial e o Rio Grande do Sul também, por possuir águas subterrâneas de altíssima qualidade.
A média da população atendida com água no Brasil é de 84% e de coleta de esgoto, 51%. Em Porto Alegre, este atendimento corresponde a 100% com água e 85% com coleta de esgoto, 27% com tratamento de esgoto. A questão é oferecer um produto com a maior qualidade possível e com o mais baixo preço. Para isso, os desafios são inúmeros, mas algumas atitudes já estão começando a ser tomadas.
Guerra pela água ainda é realidade distante
Muito se fala sobre a escassez dos recursos hídricos e suas influências na economia. Cogita-se, inclusive, grandes disputas e alterações de mercado em função dessa grande demanda, o que culminaria em uma guerra pela água.
Para o diretor-técnico da Corsan, o engenheiro químico Eduardo Carvalho, esse fato é improvável e distante da nossa realidade. Ele acredita que com a popularização das tecnologias, é possível conseguir água potável por muito tempo ainda. E quando a água doce dos mananciais, rios e lençóis subterrâneos se extinguir, fica como alternativa a água salgada, que poderá ser tratada com tecnologia de filtragem de águas salobras, que são as membranas filtrantes e osmose reversa. No entanto, ele ressalta que, mesmo contando com o suporte tecnológico, é preciso entender o motivo de tanto alarde. “Isso que se fala tanto (na escassez) é um chamariz para pensar com mais responsabilidade sobre o uso que estamos tendo”, afirma. Ele chama a atenção para um problema que está prejudicando a qualidade das águas disponíveis, que é a concentração de populações em locais específicos, poluindo margens. “Não criar conglomerados muito populosos seria uma medida preventiva importante, pois isso extrapola a capacidade de absorção do ambiente.”
O diretor-geral do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), Flavio Presser, acredita que a água não vai sumir do planeta, mas migrar. Fatores como poluição, aquecimento global e direção dos ventos influenciam na disponibilidade de água. Mas isso, até agora, não impactou no valor de aquisição. “O preço é variável pela qualidade da água, pois nós não temos ainda problema de quantidade”, explica ele.
Sobre o valor cobrado pelo consumo, ele explica que há uma tarifa que cobre todo o serviço, desde a captação, tratamento e distribuição. Se diminuir as necessidades de fazer intervenções operacionais, diminui o custo.
O preço da água tratada pelo Dmae é formado pelo custo operacional agregado por mais uma margem de investimento. Isso forma o preço. Como é uma autarquia municipal (instituição pública), não visa lucro nem recolhe tributos. O usuário só pagará sobre o serviço que utilizou, sem nenhum imposto ou outra medida de caráter fiscal.
Estiagem acarreta danos milionários à economia gaúcha
Foi com pioneirismo que o Estado instituiu uma política de recursos hídricos visando a estabelecer o uso racional da água e, assim, protegê-la. No entanto, os recursos estão vinculados ao manejo adequado de todos os bens naturais. Em função das perdas no agronegócio, da ausência de competitividade da produção e da necessidade de se estabelecer uma política racional do uso dos recursos naturais, foi criada em 2007 a Secretaria Extraordinária de Irrigação e Usos Múltiplos da Água. A implantação do órgão busca promover a agricultura irrigada.
De acordo com o secretário estadual da pasta, Rogério Ortiz Porto, sempre que ocorre estiagem registram-se perdas de vulto na economia gaúcha. Em 2005, por exemplo, o PIB foi reduzido em 4,8%. Destes, 3,1% foi provocado por perdas na agropecuária. Houve um colapso na indústria de máquinas e implementos agrícolas e deixou de circular na economia estadual mais de US$ 9 bilhões.
Considerando o período de 1970 a 2006, o Rio Grande do Sul deixou de produzir mais de US$ 1,2 bilhão por ano só em milho e soja. São enormes também as perdas na pecuária de grande porte, especialmente na produção de leite e carne, e na pecuária de pequeno porte pelo aumento dos custos de produção na avicultura e suinocultura.
“Embora todas as atividades econômicas dependam do uso da água, são aquelas atividades que se desenvolvem no verão as que sofrem maiores impactos, porque nossas principais culturas são de sequeiro e de verão”, afirma o secretário.
Imposto pode ser revertido para investimentos
No Rio Grande do Sul, o consumo médio em volume de água na área residencial corresponde a 9,6 m³. Em Porto Alegre, esse consumo médio sobe para 14m³, o que corresponde a R$ 50,90 (categoria residencial considerando água + esgoto). O consumo de água potável para ingestão humana (pela torneira) varia de 75% (no Interior) a 85% (na Capital).
Conforme o diretor-técnico da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), Eduardo Carvalho, o consumo de água individual está em declínio, influenciado pela mídia e o fator econômico. “Com mais conscientização, as pessoas querem economizar e preservar o planeta, e a própria indústria hoje tem tecnologias mais limpas”, afirma.
Na condição de companhia de economia mista, a Corsan recolhe impostos, entre eles, PIS e Cofins. “Em 2002, a taxa de Cofins era de 1,5% a 2% e hoje está em 7,5%”, reclama Carvalho. Para uma arrecadação mensal é de R$ 110 milhões, a companhia paga R$ 8 milhões de Cofins. “Esse valor poderia ir para um fundo de investimento no setor. A entidade defende que esse valor seja destinado a investimentos que beneficiem à população.”
Entre os principais gastos incidentes estão a despesa com pessoal, energia elétrica e tratamento. Os elementos químicos utilizados representam ¼ do valor gasto com energia para fazer o deslocamento da água. A Corsan destina em torno de R$ 0,45 por metro cúbico para o tratamento. “Com o uso mais adequado da energia, temos conseguido reduzir 10% dos custos ao ano”, afirma o diretor da Corsan. Já para o Dmae, o custo de produção de 1 m³ de água é de R$ 2,41 (março/2009). O preço básico residencial cobrado do usuário é de R$ 2,02 o m³. Por dia, são tratados 468.200,62 m³ de água.
Cobrança pelo direito de uso se aproxima
Um dos instrumentos de gestão dos recursos hídricos instituídos pela Lei 9.433/97, a cobrança pelo direito de uso tem o objetivo de estimular a utilização racional da água e gerar recursos para investimentos na recuperação e preservação dos mananciais. A cobrança dos recursos hídricos corresponde a um valor a ser pago para captar água ou lançar esgotos e outros efluentes líquidos nos mananciais. Embora o acesso à água seja considerado direito humano fundamental, a situação de escassez e a consciência de que se trata de um recurso limitado levaram à adoção, em todo o mundo, de um novo paradigma. Ou seja, a água é um bem dotado de valor econômico e cobrar pelo uso pode ser a melhor forma de garantir a sua preservação. A cobrança pelo direito de uso se insere no conceito do usuário-pagador e do poluidor-pagador.
Dessa forma, tanto quem capta quanto quem polui precisa pagar pelo uso do recurso hídrico. Além das indústrias e da agropecuária, também precisam pagar pelo uso da água as companhias de geração hidrelétrica, de abastecimento de água e tratamento de esgoto e outras atividades econômicas que captam água ou lançam efluentes nos mananciais. O preço a ser cobrado é fixado em cada bacia hidrográfica, a partir de um pacto entre os usuários diretos da água e o Comitê de Bacia. No Brasil, a cobrança pelo uso começou nas bacias de domínio da União do rio Paraíba do Sul (2003) e dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (2006) e foi aprovada este ano para a bacia do São Francisco. A cobrança já iniciou também nas bacias estaduais do Rio de Janeiro e o processo está em estágio adiantado de implantação nos estados de Minas Gerais, Paraná e São Paulo.
Segundo o Diretor de Incentivo ao Desenvolvimento da Fundação Metropolitana de Planejamento (Metroplan), Evaldo de Tunes Lucas, a meta é fazer com que a sociedade como um todo passe a usar a água de forma racional, para que a economia da água esteja a favor da própria sociedade. “Os recursos hídricos são como uma mola que impulsiona diretamente o desenvolvimento econômico do Estado”, afirma.
Encarregado de implantar uma política de cobrança do uso da água no âmbito da Região Hidrográfica do Guaíba (que envolve várias bacias do Estado), ele afirma que a partir de um convênio com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e a Secretaria de Habitação, Saneamento e Desenvolvimento Urbano, a Metroplan vai executar a função de agência de águas pelos próximos dezoito meses. São as agências de águas que coordenam as políticas governamentais de cobrança pelo uso do recurso.
Quem estará obrigado a pagar são as empresas de saneamento, indústrias, agricultores, todos que captam a água e que tem como finalidade o lançamento de efluentes. O preço será estabelecido pelo comitê de bacias. “Cabe ao comitê chamar os usuários e fazer uma discussão sobre o valor compatível”. Os comitês de bacias são compostos de 40% da sociedade organizada, 40% de usuários e 20% de entidades representativas do governo. Isso quer dizer que todos os usuários da bacia estarão participando da elaboração do projeto, decidindo que valor e tipo de projetos serão aplicados.
O plano de bacias prevê que a cobrança dos recursos deve retornar para a bacia por meio de projetos desenvolvidos para a melhoria da qualidade e conservação da água. Esse convênio fará trabalho de levantamento de nove comitês, estabelecerá ações que visam a levantar e conhecer um plano de bacias, para que depois se venha implantar a cobrança dos grandes consumidores e o retorno deste recursos em prol da melhoria da qualidade e quantidade da água. Espera-se poder concluir os estudos em 2010 para que em 2011 se possa estabelecer essa cobrança.
As companhias terão redução de custo de produção. À medida que a bacia melhorar sua qualidade, o custo de tratamento cai e o preço diminuirá. “Conforme possamos construir novas estações de tratamento, vamos reduzir os custos. Uma coisa puxa a outra. O que estamos querendo é recuperar os nossos recursos hídricos”, afirma o diretor.
Lucas acredita que a obrigatoriedade da cobrança pelo direito do uso da água vai instaurar nos usuários uma nova consciência sobre o desperdício e preservação dos recursos hídricos. “É importante cuidar com mais profundidade da natureza e incentivar participação maior da sociedade.”
Do ponto de vista tarifário, ele acredita que a melhoria da qualidade da água ocasionará uma queda no preço do produto, e não o contrário. Com mais recursos para fazer o controle e ações de preservação, provavelmente se gastará menos com tratamento e despoluição, e desta forma, o efeito no preço poderá ser sentido pelo consumidor.
Água mineral na cesta básica
No mês de junho foram vendidos 900 milhões de litros de água mineral no Rio Grande do Sul, e estima-se que em julho será atingido um bilhão de litros, elevando assim o consumo em 5% referente ao mesmo período de 2009. No Estado, a grande variação de temperatura no inverno faz as vendas sofrerem quedas de até 50%. “Apesar disso, é possível dizer que temos aqui a melhor água mineral do Brasil, devido às condições climatológicas, mata ciliar preservada e indústria mais organizada”, observa Leandro Greff, vice-presidente da Associação dos Distribuidores e Engarrafadores de Água Mineral do RS (Adam-RS).
Os representes do setor reclamam que a água mineral no País sofre muito com impostos. “Quem está fora do Super Simples paga 45,11% de imposto sobre o produto. Para quem está nesse regime, o imposto chega ainda a 28%”, diz. Somente de IPI no plástico para produção de garrafões de água mineral descartáveis se paga 15%.
Além da luta pela redução de impostos, a associação quer que a água mineral seja inserida na cesta básica porto-alegrense. Segundo Greff, o ideal seria colocar uma bombona de 20 litros por mês na cesta básica. “Isso seria um avanço na qualidade de vida”, afirma, explicando que cerca de 30% das doenças da população são originárias de consumo de água em más condições de armazenamento ou coleta de água.
Desde o inicio do mês de junho, o setor passou a investir 3% do seu faturamento para troca de garrafões retornáveis e até dezembro de 2010 serão investidos R$ 4,2 milhões.
O Estado já é um exportador de água mineral e atualmente 5% das empresas estão se preparando para mandar água para outros países. Atualmente, há duas empresas capacitadas para exportação de água mineral.
Greff cogita, para o próximo ano, um aumento efetivo de 10% da produção de água mineral no Estado, com a criação de mais duas indústrias. A capacidade produtiva de água atual é em torno de 5 ou 6 bilhões de litros por mês. No Brasil, o consumo chega a 20 litros per capita por ano, segundo pesquisa realizada pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).
O Rio Grande do Sul tem em torno 11 mil empregos diretos no setor de água mineral. Greff destaca que o segmento é adepto a práticas ecologicamente corretas, a exemplo do consumo da bombonas retornáveis e a distribuição feita em bicicletas. Do consumo total do Estado, 20% da distribuição é feita com o trabalho de ciclistas, sem causar a emissão de poluentes na atmosfera. Os empregos indiretos seriam em torno de 5 mil. Hoje no Rio Grande do Sul há duas fábricas de garrafões, uma em Torres e outra em Caxias do Sul, e em breve será construída mais uma indústria para produzir as embalagens. O fato irá aumentar a capacidade de produção de vasilhames, o que é bom para a economia local do mercado de água. “O imposto acaba ficando no estado de origem. Hoje conseguimos aumentar a arrecadação do Estado porque quase toda a cadeia produtiva está aqui. Falta apenas a produção de tampas, que atualmente vêm de Santa Catarina”, afirma.
(Por Lara Ely, JC-RS, 04/08/2010)