Diz-se que todo fato importante vira notícia. O “aconteceu, virou notícia” já é quase um dito popular. Há pouco mais de vinte e quatro horas ocorreram fatos importantes. Entretanto não “viraram” notícia alguma. Esses fatos não diziam respeito ao inquérito sobre a morte do filho da atriz Cissa Guimarães. Tampouco mencionavam uma novidade sobre o caso Eliza Samudio. Nada acerca das escolhas do novo técnico da seleção, Mano Menezes. Não foi veiculado por Cacau Menezes. Luiz Carlos Prates preferiu outro tema. Boris Casoy deve ter se esquecido. William Bonner não disse nada a respeito.
Essa notícia não teve o impacto na mídia que tiveram todos os polêmicos casos acima citados e sequer fora transmitida por seus carismáticos porta-vozes. E embora ela não tenha uma amplitude nacional, suas características são semelhantes a incontáveis casos por todo o país.
O fato a que me refiro ocorreu em Imbituba. Exatamente: Imbituba, você provavelmente já deve ter ouvido falar, não? “Capital nacional da Baleia Franca”, “Festa do Camarão”, Praia da Vila, Praia do Rosa, etapa obrigatória do WCT (mundial de surf), “CFZ Imbituba” (equipe de futebol novata, que surpreendeu em sua campanha no campeonato catarinense deste ano) – este é o local a que me refiro. Se, por um lado, o leitor considera que agora já deva ter alguma familiaridade ao tema, temo que infelizmente isso não ocorrerá (pelo menos ainda não). Aliás é justamente por esta razão que me ponho a escrever estas linhas: informar sobre uma notícia que não foi noticiada.
Agora, se o fato que vou tratar (mas que só irei revelar após trilhar um certo caminho) não teve repercussão como os largamente citados no início deste texto, isso se deve a duas razões. A primeira é que embora seu conteúdo seja mais importante e presente para as pessoas do que os acontecimentos sensacionalistas sobre famosos, a veiculação deste tipo de informação não é prioritária para a mídia, o que faz com que muitas vezes a população acabe não tendo acesso a tais informações. (Afinal de contas, seu conteúdo não incentiva a compra de nenhum produto nem promove algum figurão.)
A segunda – que está ligada à anterior – é que o tema se refere a uma outra Imbituba, normalmente relegada a segundo plano. Esta é uma Imbituba diferente, que não reporta aos aspectos geográficos e turísticos da região e que às vezes é desconhecida por seus próprios habitantes.
Esta outra Imbituba não se acomoda facilmente ao slogan da cidade: “um mar de oportunidades”. Se por um lado, dificilmente alguém discordaria da presença de mar na cidade, a parte do “mar de oportunidades” é consideravelmente questionável – e se não beira ao mal gosto, é pelo menos duvidosa.
Mas, continuando, esta outra Imbituba a que me refiro é a Imbituba da ICC (Indústria Carbonífera Catarinense), da ICISA, do porto e da ZPE (Zona de Processamento de Exportação). Explico: tem a ver com a poluição e o curto período de vida útil da ICC (13 anos), bem como com os desempregados que deixou; com o penoso – e fracassado – processo de revitalização da ICISA, que após falência deixou um saldo de centenas de desempregados – até hoje sem parte da remuneração que tinham por direito; com a homérica concessão de décadas à iniciativa privada do porto da cidade e seu costumeiro projeto de ampliação e, finalmente, a espetacular estagnação e desvio de dinheiro público do que deveria ser uma das maiores zonas de processamento de exportação do Brasil. Estes elementos estão ligados a outra Imbituba, pois todos correspondem ao ideal de crescimento da cidade contraposto à eterna promessa de sua concretização, de geração de empregos e de um futuro melhor e mais promissor para todos.
O raciocínio desenvolvido até aqui informa um quadro geralmente desconhecido sobre a cidade para as pessoas de fora, ao mesmo tempo que recorda – com um sabor amargo – estas características aos habitantes. Imbituba é, definitivamente, uma cidade que vive de remoer e orar por uma promessa de desenvolvimento que teima em não se efetivar.
É por isso que um número significativo dos habitantes imbitubenses decide – ou melhor, é condicionado a – tentar a vida em outro lugar, seja para estudar ou trabalhar. Isso sem contar sempre a existência de um conhecido que tentou isso no exterior (não são poucos os casos de pessoas que encontram imbitubenses nos lugares mais insólitos do planeta e, arrisco dizer, do sistema solar).
Seguindo essa sequência de investimentos fracassados, era de se esperar que cedo ou tarde uma nova empresa viria a se instalar, proclamando-se a mais nova salvação da cidade. Esse projeto já tem um nome e vigora retumbante do modo que apenas uma das maiores empresas do país pode ter. Chama-se Votorantim. Vem propondo a geração de suntuosos empregos diretos e outros tantos indiretos com sua instalação. Nessa ode à esperança e aos bons tempos, os pontos positivos não irão faltar; e com uma inexplicável diferença quanto aos fracassados exemplos precedentes – agora vai!
Entretanto, pergunto eu, caro leitor, quais são as garantias de que novamente não venham ocorrer os mesmos e já conhecidos problemas destes magníficos empreendimentos, em mais uma ilusória esperança de prosperidade para a cidade? Devemos pensar no modelo de desenvolvimento que queremos ou simplesmente aceitar que se instale uma multinacional que oferece inúmeros riscos à saúde dos funcionários e habitantes da cidade, correndo inclusive o risco degradar irreversivelmente o meio ambiente da região?
O local de instalação desta unidade, admitindo que realmente ocorra, serão os Areais da Ribanceira. Essa zona, que compreende um total de 290 hectares, vai da Volta da Taboa até o trevo da Divinéia, estendendo-se ao fundo, até quase à Praia da Ribanceira.
Mas o que, hoje, compreende essa zona? – pergunto. Algo deve haver, não? Sim, há. A área é composta por grandes extensões de mata atlântica e várias plantações, especialmente roças de mandioca. Roças que foram cultivadas por sucessivas gerações desde a vinda dos primeiros imigrantes açorianos para cá. Mas isso não é tudo: abriga ainda projetos da Universidade Federal de Santa Catarina e conta com um engenho de farinha, recém-construído, alicerce desta cultura agrícola, englobando desde a forma de cultivo à fabricação de um produto, indispensável à culinária local: a farinha, base de diversos pratos típicos da gastronomia da localidade. São em torno de 50 famílias que complementam sua renda com a plantação e comercialização de farinha de mandioca.
Pois bem, nas atuais circunstâncias a implementação daquela indústria significa a destruição deste engenho. Não é apenas uma alusão figurativa, o que ocorre é que as referidas terras, pertencentes à União, foram arrematadas por um empresário da cidade e foram posteriormente vendidas à Votorantim. Vale dizer que o procedimento que envolveu a execução do leilão público foi bastante obscuro. E, como resultado, teve-se a compra de todo o território pela bagatela de R$ 0,11 m² (você não leu errado: foram 11 (onze) centavos por metro quadrado!), por uma única pessoa, a ser paga em cem parcelas – desnecessário dizer que esta quantia era suficiente para que as terras fossem adquiridas por qualquer interessado. Como se não bastasse, um dos argumentos para a compra foi o de que estas eram terras improdutivas e desocupadas – negando, portanto, a presença secular e o cultivo dos agricultores na região.
Como forma de se articularem e lutarem pela terra que é sua por direito, no mesmíssimo local onde a tradição de seus antepassados os ensinou a lavrar, os agricultores organizaram-se na ACORDI (Associação Comunitária Rural de Imbituba). Investiram na organização das Feiras da Mandioca, evento anual com o propósito de alertarem sua situação à população e clamarem pela preservação da comunidade tradicional que são.
A questão do direito sobre as terras vem se arrastando na justiça. Em breve haverá uma resolução no Supremo Tribunal. E foi assim que, recentemente, mesmo sob irregularidade – já que estava em questão – que as terras foram vendidas. E é assim que o nome da Votorantim aparece nesta história.
A notícia, prometida no início do texto e só a partir de agora anunciada, tem a ver com a situação atual deste embate: ocorreu no dia 28 de julho o que pode ser considerado a primeira vitória significativa sobre parte das terras – e ela não foi para os agricultores.
O evento ficou expressado pela desapropriação do Seu Antero, único morador das terras e um membro da ACORDI. Passados dois meses sob um forte clima de tensão, ocasionado por uma ordem de despejo, ele finalmente teve de deixar sua casa – a qual já estava com a quase totalidade dos móveis encaixotados para remoção – face o pedido de reintegração de posse. Isso significou que a balança começou a pender para o lado dos empresários locais e da gigantesca empresa. Vale dizer que o ato foi conduzido pela presença de um enorme contingente policial, vindo inclusive de outras cidades. Polícia Militar, cavalaria, bombeiros, Pelotão de Patrulhamento Tático (PPT)… todos estavam presentes para a efetivação da medida. No início, por volta das 6h10 – a escolha do horário procurava evitar a presença de pessoas durante a desapropriação –, sem necessidade alguma, os componentes do PPT fizeram uma demonstração de força, fazendo formações, gritando cada um sua identificação numa tentativa de intimidar os presentes – da mesma forma que fariam se estivessem tratando criminosos ou algo do gênero.
Cabe também dizer que em 2005 o mesmo Seu Antero, após ameaças do ex-proprietário (o golpista do leilão), sofrera agressões junto com a família (crianças inclusive), tendo sido amarrado e surrado pelos capangas do empresário, além de ter a casa completamente destruída.
Ontem, mais uma vez, ele teve que se retirar de seu domicílio, com todos seus objetos e animais de criação… tudo sem um destino certo. A área começou a ser cercada e tem proibida a entrada em grande parte de sua extensão, pois já é considerada propriedade particular – há inclusive seguranças para garantir a “integridade do local”.
“Integridade do local”. Acredito que este deve ser um dos termos técnicos usados numa ocasião destas. Assim sendo, cabe a pergunta: integridade a quem? Não me parece que aos trabalhadores, na maioria idosos, que depois de décadas de trabalho têm agora como recompensa uma contundente ameaça de perderem seu meio de vida.
É preciso que, neste caso, o leitor perceba a lógica por detrás dessa medida. O que se tem aqui é apenas um dentre os vários litígios de terras, onde, para a aquisição da área pretendida, as grandes empresas fazem suas negociações sem considerar um elemento significativo: o ser humano. O que se visa é o lucro, todo o resto é dispensável e todos os meios são válidos para se alcançar o objetivo. Entre um empresário primeiro e uma multinacional depois, não foram respeitados pelos mesmos nada que não fossem os próprios interesses. Os agricultores receberam no máximo uma qualificação de empecilhos, o que, para aqueles que consideram os envolvidos como obstáculos, nada mais compreensivo que solucionem o problema como se faz com obstáculos: a simples remoção.
O que não é tão claro, mas deve ser notado, é que ninguém está a salvo deste tipo de ação. Não é raro que muitas vezes só se perceba a injustiça dessas medidas, ainda que baseadas na lei, quando elas batem no vizinho ao lado. E quem sabe se na próxima vez não seremos nós mesmos os atingidos?
É dessa forma que este caso diz respeito a todos e não apenas aos envolvidos diretamente. Não porque aconteceu próximo, mas porque ocorre de diferentes maneiras, em diversos lugares, o tempo inteiro – e todos estamos sujeitos.
Reconhecer e entender a injustiça como prática cotidiana e diária dos poderosos contra os oprimidos é uma tarefa que, embora dolorosa, só vem a acrescentar ao homem a humanidade em seu sentido mais puro; é a solidariedade e a compreensão do mundo que nos torna efetivamente humanos. Ainda que para isso tenhamos, infelizmente, que testemunhar o que ocorre ao nosso lado, com pessoas que conhecemos, para que possamos enfim compreender o quanto precisamos alterar esse mundo.
Resistência e solidariedade à ACORDI!
A luta continua!
(Por Mateus Pinho Bernardes, Estudante do curso de História pela Universidade Federal de Santa Catarina, Apoiador da ACORDI, MST, 03/08/2010)