Entre 70 e 80 líderes indígenas estarão em Brasília nos dias 2 e 3 de agosto para pedir aos senadores que votem favoráveis à criação da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai). A secretaria é uma das seis previstas para o Ministério da Saúde, segundo o Projeto de Lei de Conversão (PLC 8/2010) da Medida Provisória (MP 483), que modifica a estrutura da Presidência da República. A votação está prevista para o dia 3. O ISA lançou uma cyberação em apoio à secretaria. Confira aqui.
Com a nova secretaria, o atendimento à saúde indígena escapa do controle da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), alvo de denúncias de corrupção, desvios de recursos, aparelhamento partidário, e passa a responder diretamente ao Ministério da Saúde. Caso o PLC não seja votado, a MP perde eficácia e a Funasa permanece com a saúde indígena.
A mobilização das lideranças indígenas foi confirmada nesta terça-feira ao site do ISA por Valdenir Andrade França e Luiz Brazão dos Santos, ambos da etnia Baré, no Alto Rio Negro, e Edmilson Canale, dos Terena, no Mato Grosso. Integrantes do Conselho Nacional de Saúde (CNS), eles afirmam que em ano eleitoral é preciso definir quais os políticos comprometidos com a defesa dos interesses indígenas. “Diante de tantas mortes de crianças, jovens e adultos nas aldeias por falta de atendimento, queremos que os senadores nos ajudem a corrigir o sistema”, diz Valdenir França, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) na Comissão Intersetorial de Saúde Indígena do CNS. Veja aqui uma cronologia dos principais fatos ocorridos entre janeiro de 2009 e julho de 2010 em relação ao atrendimento à saúde indígena pela Funasa.
Índio decide eleição
“Os políticos têm de saber que em muitas regiões a população indígena vai definir a eleição de senadores e deputados. Inclusive no Amazonas, onde há a maior população indígena que vota. Estamos correndo atrás de saber quem tem compromisso com a saúde do índios, quem são parceiros e quem não são”, afirma França.
Edmilson Terena, coordenador do Fórum de Presidentes do Conselho de Saúde Indígena (Condisi), diz que a mobilização dos dias 2 e 3 também visa sensibilizar os senadores para que haja quórum na votação do PLC. “Se não for votado até dia 4 de agosto, a MP perde eficácia e tudo continuará como está, o que não é de interesse nosso.”
Em 7 de julho, a Câmara dos Deputados aprovou o PLC da MP 483. Agora falta o voto dos senadores. Segundo Luiz Brazão dos Santos, um dos diretores da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), o projeto de lei é um avanço em relação à MP – editada em março deste ano – pois, além de criar as novas secretarias, retira expressamente da competência da Funasa a atenção básica à saúde indígena e transfere do Departamento de Saúde Indígena para o Ministério da Saúde os cargos em comissão e funções gratificadas.
Médico sugere mudança de critérios
O médico sanitarista Douglas Rodrigues é coordenador do projeto Xingu da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e responsável pelo atendimento médico de 2,2 mil índios que vivem nas aldeias do Médio e Baixo Rio Xingu. Em entrevista ao ISA, ele revelou um dos motivos pelos quais concorda que a saúde indígena deva sair do controle da fundação. “A Funasa continua trabalhando com os índios como no tempo em que controlava malária no meio do mato. O trabalho de saúde indígena é muito complexo. São 400 mil índios aldeados no Brasil, e cada grupo de mil é diferente de outros mil e estes de outros 500 e por aí vai. Assim, os critérios comuns de saúde pública, como um médico para dois mil habitantes – que valem para cidades como São Paulo –, não servem para os índios do Xingu, nem para os Ianomâmi, onde talvez seja necessário um médico para 500, 300 habitantes. Os índios são muito vulneráveis, estão em locais distantes e de difícil acesso”, diz Rodrigues.
“Em 10 anos de gestão do sistema de saúde indígena, a Funasa demonstrou que não conseguiu adquirir competência técnica e de gestão para fazer com que os recursos, que não são pequenos – investe-se hoje per capita no índio duas a três vezes o que se investe na população não indígena – tenham bons resultados. O atendimento fica sempre muito aquém do esperado.” O médico dá um exemplo: “Acabei de chegar de uma aldeia onde uma criança apresenta lesão renal importante, congênita, e que está num bom momento para tratar, para fazer cirurgia. Ela vem sendo acompanhada num serviço de boa qualidade, mas acabou perdendo consulta por falta de passagem para a viagem. E por não haver vaga na casa abrigo, sempre lotada. Em todas as aldeias você verá essa situação. Pessoas que precisam sair e não conseguem, pessoas que têm retorno no tratamento e não conseguem.”
Secretaria permitirá gestão mais técnica
Para Marcos Wesley, coordenador adjunto do Programa Rio Negro e área Yanomami, a aprovação pelos senadores da criação da secretaria pode permitir uma gestão mais técnica, mais paritária dos recursos. "Desde o primeiro mandato do presidente Lula houve uma politização, uma partidarização do sistema de saúde indígena, com a entrega da Saúde ao PMDB. O noticiário tem dado detalhes chocantes de como degringolou a situação."
Valdenir França acusa a Funasa de agir com retaliação. "Quando foi proposta a criação da secretaria, a Funasa retirou as ações de saúde nas áreas. Eles negam, afirmam de pés juntos que não retiraram. Na região do Rio Negro, estamos há quase dois anos sem atendimento. Só tem resgate de doentes em casos de emergência." E não é só na área do Rio Negro, segundo França: "A região Yanomami está com problemas graves. Em alguns lugares não há atendimento de saúde porque os recursos foram desviados. Existe uma briga da Funasa com a Anac e os aviões não estão levando socorro às aldeias. Tivemos em Porto Velho a ação da Polícia Federal que descobriu desvios de R$ 2,1 milhões. No Amazonas, no Vale do Javari, há uns quatro anos, foram comprados barcos e motores para aquela região e até hoje não há esses equipamentos lá."
Marcos Wesley acrescenta: "Por causa da interrupção dos vôos foram liberados R$ 300 mil para a compra emergencial de horas de helicóptero. A empresa JVC, de Manaus, ganhou essa licitação com um valor de R$ 5.380 a hora, mesmo com a empresa Paramazônia oferecendo R$ 3.300 a hora". O coordenador do Programa Rio Negro informa que em 15 dias foram usadas as 58 horas, cobrindo a ausência de aviões. "E, na semana passada, o Distrito Sanitário Yanomami (DSY) suspendeu o uso do helicóptero porque isso é insustentável, considerando que a Funasa-RR não recebe repasse de recursos há dois meses. Não tem mais dinheiro para hora-vôo nem para insumos."
O serviço de saúde de má qualidade que vinha sendo prestado pela Funasa somado à interrupção dos vôos e à falta de medicamento para combater a malária, elevaram assustadoramente tanto a malária vivax quanto a falsiparum na Terra Indígena Yanomami, principalmente nas regiões de Marari e Auaris, diz Wesley.
Proposta de campanha de Lula
Edmilson Terena lembra que os índios pedem apenas o que era proposta de campanha do Presidente Lula em 2002. “Ele prometeu dar autonomia aos distritos e criar uma secretaria específica para atender a saúde da população indígena. E até hoje isso não aconteceu.” De acordo com Terena, o grupo de trabalho de saúde indígena do Ministério da Saúde propõe a reestruturação física e logística dos distritos, para dar condição ao profissional de saúde de trabalhar nas aldeias. “É preciso adotar uma política de recursos humanos, com concursos, o que não há na Funasa há muito tempo. Só há contratos temporários que precisam ser renovados a cada período. Queremos concursos para que o funcionário seja efetivado como profissional de área indígena. Queremos discutir a criação de uma conta especial para receber os recursos da secretaria de atenção básica e levá-los a uma conta controlada pelos distritos. Hoje, esses recursos são repassados para os municípios e não chegam para o atendimento nas aldeias. Os prefeitos contratam amigos, parentes, gente que não tem capacitação para a saúde indígena.”
Edmilson Terena cita outro caso que poderá ter solução com as mudanças aguardadas pelos indígenas. “A maioria dos sistemas de abastecimento e tratamento de água das aldeias foram superfaturados e ainda ficam sem manutenção. No contrato está que o material é de boa qualidade, mas quando chega à aldeia se vê que é de última qualidade. Isso vai acabar.” Ele conta que a Funasa informa que 75% das aldeias têm saneamento básico de boa qualidade. “Como usuário, digo que isso acontece no máximo em 25% das aldeias. Se não tratamos do saneamento básico, crescem os problemas de doenças gastrointestinais, desnutrição, infecções que obrigarão a deslocamento para hospitais nas cidades, além do aumento no consumo de remédios. Nunca conseguimos expor isso à Funasa. Ela nunca aceitou discutir.”
Luiz Brazão disse que os índios não têm conhecimento da proposta da senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO), autora do relatório do PLC que será votado dia 3. “Mas queremos que ela mantenha o projeto do jeito que foi elaborado em relação à criação da secretaria.”
Apoie a campanha pela criação da secretaria especial de saúde indígena. Mande uma carta aos senadores.
(Por Julio Cezar Garcia, ISA, 28/07/2010)