O toma lá, dá cá envolvendo Unidades de Conservação federais e estaduais, que se estabeleceu há mais de um ano em função da obtenção da licença da Usina Hidrelétrica de Jirau, em Porto Velho (RO), terminou aumentando as extensões das áreas protegidas, além de legitimar a invasão de madeireiras e pecuaristas na Floresta Nacional Bom Futuro.
Um ano depois do Termo de Acordo celebrado entre o então ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, o então presidente do ICMBio, Rômulo Barreto Mello, e o governador de Rondônia, Ivo Cassol, foi publicada a Lei Federal nº 12.249 de 11/07/2010 que efetiva as alterações propostas pelo GT formado pela Portaria MMA nº 232 de 1 de julho de 2009 (Saiba mais).
A lei possibilitou a realização de permutas entre terras da Floresta Nacional (Flona) Bom Futuro, Esec Cuniã, Parna Mapinguari e Unidades de Conservação (UCs) estaduais de uso sustentável, proporcionando alteração de categoria e esfera de gestão de parte das áreas envolvidas. Também legitima a ocupação na Flona com a desafetação da porção ocupada para UCs estaduais. A Lei nº 12.249 foi complementada pela Lei Complementar Estadual nº 581 de 30/06/2010 que revogou UCs estaduais e criou duas novas UCs na área desafetada da Floresta Bom Futuro.
Embora as alterações revelem a arbitrariedade de algumas decisões políticas vestidas de gestão ambiental, no balanço final, em relação ao cômputo de UCs, o acordo resultou em um acréscimo de extensão nas UCs de proteção integral, principalmente sob gestão federal, que pode ser julgado como um fator positivo na conservação e implementação da mesma.
O que aconteceu
Ampliações
Parna Mapinguari em 180.800 ha (incorporando a Florsu Rio Vermelho A, parte da FLORSU do Rio Vermelho B, a Esec Antonio Mugica
Nava e parte da ESEC Serra dos Três Irmãos) Esec Cuniã em 63.812 ha (toda a área da FLORSU do Rio Madeira A)
Revogações
Floresta de Rendimento Sustentado do Rio Vermelho A; Floresta de Rendimento Sustentado do Rio Vermelho B; Floresta de Rendimento Sustentado do Rio Madeira A (63.812 ha incorporados à ESEC Cuniã); Estação Ecológica Estadual Antônio Mugica Nava.
Desafetada/Reduzida Flona Bom Futuro - dos atuais cerca de 280.000 ha para cerca de 97.357 ha: 144.417 ha para as novas áreas estaduais: APA e FES do Rio Pardo. O eliminando sobreposição irregular com a TI Karitiana. Esec Serra dos Três Irmãos: reduzida de 99.813 para 89.847. Os restantes 9.966 ha foram incorporados ao Parna do Mapinguari.
Criadas APA e Floresta Estadual do Rio Pardo inseridas na área originária e desafetada da Floresta Nacional do Bom Futuro com área
aproximada de 144.417 ha. (As áreas criadas deverão ser definidas por ato do Poder Executivo Estadual, através de uma Comissão Multidisciplinar). (Veja no mapa acima como ficou)
Histórico
Concebido pelo governo do Estado de Rondônia, a idéia principal que motivou a elaboração do Termo parece ter sido a descriminalização das 5.000 famílias ocupantes da Flona Bom Futuro, em contrapartida à liberação da Hidrelétrica Jirau, no Rio Madeira. Antes de ser assinado, o Termo foi apresentado em um encontro local com moradores do distrito Rio Pardo (Veja quadro sobre a Flona Bom Futuro) e aplaudido pela comunidade. Posteriormente, foi então levado à ministra-chefe da Casa Civil Dilma Roussef e ao Presidente Lula, que aprovaram e encaminharam para as providências legais no âmbito do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Em notícia divulgada em 2/6/2009, pelo Departamento de Comunicação do governo de Rondônia, assim se pronunciou o governador Cassol: "A idéia da permuta das áreas foi do meu vice Cahulla, nós apresentamos ao Presidente quando ele esteve visitando as usinas e agora é realidade: os moradores do Rio Pardo terão a regularização fundiária e a usina será construída. Resolvemos um grande problema social e econômico para Rondônia e para o Brasil ao mesmo tempo, e do jeito que a gente queria". Estado (Leia mais).
Em junho 2009, os ânimos estavam acirrados na região. Centenas de manifestantes bloquearam o acesso ao canteiro de obras da UHE Jirau, localizada no Rio Madeira, município de Porto Velho, paralisando a construção. Inicialmente com 350 manifestantes, um ato realizado no dia 16 acabou reunindo 900 pessoas que protestavam contra as multas aplicadas pelos crimes ambientais cometidos na Floresta Nacional de Bom Futuro(Leia mais).
Desintrusão na Flona
Desde maio de 2009, a Flona Bom Futuro era cenário de um dos maiores procedimentos de desintrusão já realizados no país, em ações que mobilizaram uma extensa e comprometida equipe de mais de 400 homens da Força Nacional, Exército e do MMA. Ante o prenúncio de um conflito ainda maior com a comunidade do distrito de Rio Pardo e sob pressões políticas locais, o governo do estado foi extremamente astuto ao perceber que tinha a possibilidade de dar as cartas no momento, resolvendo de uma vez por todas a instabilidade gerada pelos anos e anos de ausência de políticas públicas de conservação, produção e assentamento adequadas da população. Tais, medidas deveriam ter sido tomadas pelo governo estadual, como a implementação de zoneamento, para o justo e saudável desenvolvimento de Rondônia.
Naquele momento, a licença de instalação (LI) da hidrelétrica ainda não havia sido emitida e a licença prévia (LP) do empreendimento já havia caducado na semana de 18 de maio de 2009. E segundo a Energia Sustentável do Brasil, concessionária do empreendimento, o prejuízo era de R$ 6 milhões/dia, entre custos com obra e pessoal e projeção de atraso na venda futura de energia. O parecer da equipe técnica do Ibama havia sido contrário à emissão da LI, alegando que algumas condicionantes da LP não haviam sido atendidas parcial ou integralmente. Além de condicionantes de adequação técnica e mitigação do impacto ambiental da UHE estavam também pendentes - e eram empecilhos de maior visibilidade política para a liberação da LI - o consentimento formal da prefeitura de Porto Velho e do próprio governo do estado.
O protocolo de intenções para a realização de investimentos compensatórios da Energia concessionária com a prefeitura de Porto Velho foi assinado em 27 de maio de 2009, contemplando aproximadamente R$ 69 milhões para a infraestrutura do município, entre salas de aula e unidades de saúde. Dessa forma só ficou pendente o acordo com o governo do estado para a emissão da LI.
Como a usina era considerada fundamental pela Casa Civil e pela Presidência da República o cenário estava propício à proposta encaminhada pelo governo do estado. No mesmo dia em que foi assinado o Termo de Acordo entre o MMA, o ICMBio e o Governo do Estado de Rondônia (2 de junho de 2009), o governador Cassol eliminou as pendências no processo de licenciamento da UHE Jirau, aceitando o repasse de R$ 90 milhões, a serem empregados na ampliação do sistema prisional, na ampliação de escolas e leitos, aquisição de novos equipamentos para o setor de educação da saúde e custeio de atividades deste último, bem como asfaltamento e conservação das rodovias e pontes. A aprovação do projeto básico da UHE Jirau pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) foi publicada Diário Oficial da União de 5 de junho seguinte. (Saiba mais).
Fiscalização desagrada moradores
Embora aparentemente tudo estivesse resolvido, a equipe de fiscalização envolvida no processo de desintrusão da Flona Bom Futuro - cujo custo ultrapassara R$ 6 milhões - coerentemente, considerou o Termo de Acordo extremamente contraditório com os princípios e metas por meio dos quais vinham fundamentando suas ações e continuaram a fiscalização na área com atenção aos outros crimes ambientais que se faziam presentes.
A continuidade das ações de fiscalização - cujas autuações ultrapassaram R$34 milhões - enfureceram alguns moradores locais, os quais acreditavam que o troca-troca realizado entre governo federal e estadual seria o suficiente para encobrir todos os crimes ambientais já realizados, passiva ou ativamente. Ainda que o acordo culminasse em leis para regularizar a ocupação dos moradores do distrito de Rio Pardo, desafetando a porção da Flona irregularmente ocupada, esses instrumentos não legislariam sobre as obrigações e proibições ordinárias relativas ao cumprimento da adequação da propriedade rural. Assim, durante julho e agosto/2009, a equipe local do ICMBio foi alvo de constantes ameaças e até mesmo tiveram um carro oficial queimado.
Enquanto isso, o Ministério Público Federal (MPF/RO) e o Ministério Público Estadual de Rondônia (MP/RO), entraram com uma ação contra o presidente do Ibama devido à emissão da licença de instalação da UHE de Jirau, mesmo ante o parecer contrário da equipe técnica do Ibama.
As UCs estaduais envolvidas
A negociação envolveu florestas estaduais que estavam em terras da União, nunca tendo sido repassadas ao estado. As florestas de rendimento sustentável (Florsu) Rio Vermelho A e B, assim como a Estação Ecológica Serra dos Três Irmãos, foram criadas em 1990, no Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia (Planafloro), e não foram efetivamente implementadas. A criação de UCs estaduais foi considerada pelo Banco Mundial, na época, uma condição básica para o início do desembolso de recursos do empréstimo para o Planafloro e , assim, várias UCs foram criadas por decreto, especialmente entre 1989 e 1991, mas não chegaram a ser implementadas.
A Floresta Nacional Bom Futuro
O Governo Federal criou, em 1961, as primeiras unidades de conservação em Rondônia. Nos anos 1970 foram lançados projetos de colonização, com concessão de terras a preços simbólicos e incentivos fiscais, para atrair grandes pecuaristas e outros empreendedores para a Amazônia. Tal medida afetou a vida de povos indígenas e interferiu no tamanho de seus territórios. No inicio dos anos 1980, foi criado um programa de desenvolvimento regional financiado com empréstimos do Banco Mundial, o Polonoroeste, que estimulou a implantação de obras de infraestrutura de transportes e incluía um componente de proteção ao meio ambiente e apoio a comunidades indígenas, que não foi implementado. Na sequência, foi criado o Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia (Planafloro), pautado em um plano estadual de “zoneamento sócioeconômico e ecológico”. O objetivo seria fortalecer cadeias produtivas, associadas às atividades econômicas com sustentabilidade ambiental, inclusão social e respeito à diversidade cultural, mas que acabou estimulando o desmatamento, a concentração fundiária, a grilagem e a exploração ilegal de madeira.
A Flona Bom Futuro, localizada no município de Porto Velho e Buritis (RO) foi criada em 1988 por exigência do Banco Mundial, financiador do Programa Polonoroeste, que tinha como eixo a pavimentação da BR-364 (trecho Cuiabá/PortoVelho) e os projetos de colonização de Rondônia e do oeste do Mato Grosso. Embora essa categoria de Unidade de Conservação tenha como objetivo principal o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, sendo admitida a permanência de populações tradicionais que a habitam quando de sua criação, o caso da Bom Futuro é extremamente diferenciado.
O relatório “O Fim da Floresta?” do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), publicado em 2008, relata que a invasão da Bom Futuro iniciou-se com a retirada de madeira por empresas dos municípios de Buritis e Alto Paraíso, seguida pelo estabelecimento de loteamentos. Esse histórico de ilegalidade e ocupação desordenada, transformou a Bom Futuro numa das UCs com maior desmatamento acumulado até hoje, aproximadamente 25% (dados do Prodes), um assentamento no interior da Flona de aproximadamente 5.000 habitantes, o distrito de Rio Pardo, e uma lista de 236 criadores de gado bovino que operam ilegalmente, com um rebanho estimado em 35 mil cabeças.
O desmatamento acumulado em Rondônia, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), chegou a quase 9 milhões de hectares (89.994 km²) em julho de 2007, o que representa mais de um terço (37,72%) da área total do estado (238.523 km²). As áreas protegidas, cada vez menores na região, seriam formas de garantir a conservação da floresta e contribuir para a manutenção da biodiversidade. Nas áreas reduzidas ou suprimidas de UCs estaduais por meio de iniciativas do Executivo e Legislativo, que entre 1995 e 2003 somaram mais de dois milhões de hectares (21.119 km²), o desmatamento cumulativo chegou a 29% da área total em julho de 2007, ou seja, 6.201 km². Segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), somente entre agosto de 2007 e abril de 2008, foram desmatados 3.807 hectares na Flona Bom Futuro, tornando-a uma das campeãs de desmatamento entre as UCs da Amazônia Legal nesse período.
(Por Silvia de Melo Futada com Alicia Rolla, ISA, 21/07/2010)