Documento busca garantir direitos de populações indígenas e tradicionais e distribuição efetiva de benefícios. Cerca de 180 pessoas participaram de consultas. Desafio agora é influenciar políticas públicas.
Um conjunto de organizações e movimentos sociais que engloba a maior parte da sociedade civil amazônica interessada na questão ambiental acaba de finalizar um documento com orientações para iniciativas de Redução das Emissões de Desmatamento e Degradação Florestal (REDD). O texto "Princípios e Critérios de REDD – Para o desenvolvimento e implementação de programas e projetos na Amazônia Brasileira" traz preceitos mínimos que devem ser seguidos por governos, empresas, organizações não governamentais e agências internacionais para que ações apoiadas por eles evitem impactos socioambientais negativos e tragam de fato reduções das taxas de desmatamento, benefícios para a conservação e populações locais.
O documento foi finalizado depois de mais de um ano de debates e consultas que envolveram 180 pessoas, entre técnicos, pesquisadores, representantes de entidades ambientalistas, povos indígenas e tradicionais, agricultores familiares, produtores rurais e florestais. Participaram do processo o Conselho Nacional de Seringueiros (CNS), o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e o ISA, entre outros. Foram realizadas reuniões em Manaus, Belém, Porto Velho, São Paulo e Lucas do Rio Verde (MT). O lançamento oficial do documento e de um vídeo que retrata a consulta será na segunda quinzena de agosto.
O REDD promete ser a grande contribuição das nações em desenvolvimento detentoras de florestas no combate às mudanças climáticas, mas a maneira como ele será viabilizado ainda precisa ser definida e regulamentada nos fóruns internacionais sobre o assunto. Basicamente, o mecanismo diz respeito a formas de recompensar países e comunidades pela redução das emissões de gases de efeitos estufa obtidas pela conservação de florestas sob sua responsabilidade. Esse foi um dos principais temas da Convenção Quadro das Nações Unidas para a Mudança Climática (COP-15) realizada em Copenhague, Dinamarca, em dezembro do ano passado.
Princípios
Entre os oito princípios listados no documento lançado agora, estão o reconhecimento dos direitos de populações indígenas, tradicionais e de agricultores familiares sobre suas terras e recursos naturais; o cumprimento da legislação ambiental e trabalhista; a garantia de que os benefícios financeiros ou de outra natureza das iniciativas cheguem às comunidades (veja a íntegra do texto). Também é mencionada a necessidade do consentimento livre, prévio e informado dessas comunidades para a implantação de qualquer projeto que as afetem, cláusula reconhecida pela legislação nacional e por tratados internacionais assinados pelo Brasil, mas que vem sendo desrespeitada no País.
Durante os debates, foram registrados pelo menos três casos de comunidades abordadas por organizações que se ofereceram para intermediar contratos de créditos de carbono evitado. De acordo com os relatos, não foi feita uma consulta organizada da população interessada nem oferecidas informações básicas sobre o contrato, suas consequências para os moradores e como esses créditos seriam comercializados. Para os responsáveis pelo documento, casos como esses reforçam a necessidade de divulgar o tema e regulamentá-lo com a participação da sociedade civil para evitar abusos. Setores do movimento social temem que o REDD fragilize as prerrogativas das populações indígenas e tradicionais sobre seus territórios e recursos naturais.
"O REDD pode ser uma grande oportunidade se ele for concebido com transparência, com ética e com participação. Mas também pode significar a expulsão de povos da floresta, dominação por organizações internacionais, aumento da pobreza, diminuição da qualidade de vida," explica Rubens Gomes, presidente do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), uma das redes que ajudou a conduzir a discussão do documento. Ele argumenta que a legislação atual não dá conta de proteger os direitos dessas populações frente a um mercado ainda sem marco regulatório, mas que já conta com várias iniciativas-piloto no Brasil e no mundo.
Políticas oficiais
"O debate foi realizado de forma tão ampla e participativa que as ONGs e movimentos se apropriaram do processo. Eles se enxergam no documento", garante Maurício Voldivic, facilitador dos debates e coordenador de projetos do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora). A intenção agora é tentar influenciar com o resultado do trabalho as discussões sobre normas estaduais, nacionais e internacionais de REDD. Voldivic avalia que, dada a representatividade do documento, dificilmente as políticas oficiais sobre o tema a serem formuladas vão divergir frontalmente dele. “Acho difícil, por exemplo, que alguém proponha que os principais beneficiários não sejam as populações que conservam a floresta”.
O Ministério do Meio Ambiente (MMA) vem coordenando reuniões para discutir o esboço de uma política nacional de REDD. A diretora do Departamento de Mudanças Climáticas do ministério, Thaís Linhares Juvenal, confirma o interesse do governo em incorporar elementos do documento, mas ressalva que o assunto está sendo negociado também com outros setores, como governos estaduais e empresas. "Acho muito importante esse trabalho no momento em que estamos discutindo essa política. O REDD tem de estar ancorado no que acontece no campo, nas comunidades, na prática", afirma. Também tramita na Câmara Federal um Projeto de Lei sobre o mesmo tema.
"Esses princípios podem orientar as regulamentações nacionais sobre o assunto e influenciar o posicionamento do Brasil frente às discussões internacionais dentro de uma preocupação maior que são as políticas de mudanças climáticas", acredita Erika Magami Yamada, advogada do ISA. Ela lembra que o documento insere a lógica da floresta num mecanismo que alguns vêem apenas pela lógica do capital. "Não se trata apenas de uma corrida por recursos financeiros, mas antes de tudo o reconhecimento e investimento na manutenção de modos de vida que se mostraram sustentáveis e protetores de recursos essenciais para a sociedade mundial. Os direitos dos povos das florestas devem ter primazia frente a qualquer iniciativa REDD."
Rubens Gomes aponta que uma das questões mais difíceis de equacionar será como viabilizar a distribuição igualitária dos benefícios dos contratos. Para ele, qualquer tipo de pagamento direto às comunidades, como é feito hoje no projeto Bolsa-floresta do governo do Amazonas, precisa ser acompanhada de políticas públicas estruturantes de longo prazo que envolvam educação, ciência e tecnologia, incentivos para a produção sustentável. "Se não, corremos o risco de criar uma dependência perene.” Gomes avalia ainda que a participação da sociedade, a capacitação de lideranças e a criação de instrumentos de controle social para verificação da aplicação dos princípios e critérios também são desafios. O GTA pretende lançar em agosto um Observatório de REDD que vai monitorar sistematicamente iniciativas dessa natureza. A ideia é também promover cursos e formações, disponibilizar análises, publicações e informações sobre o assunto.
“Creio que esse documento também pode servir como um conjunto de preceitos que podem ser usados por organizações e comunidades para proteger seus interesses nas negociações diretas de contratos, tendo assim um papel complementar à legislação”, explica Adriana Ramos, secretaria executiva adjunta do ISA. Ela considera ainda que todo o processo de debate teve um papel político e pedagógico que deveria orientar outras consultas semelhantes.
(Por Oswaldo Braga de Souza, CarbonoBrasil, 20/07/2010)