A Justiça Federal aceitou mais três denúncias de trabalho escravo oferecidas pelo Ministério Público Federal (MPF) no 1o semestre deste ano. Os processos se referem a ocorrências do crime previsto no Art. 149 do Código Penal em Pernambuco, Sergipe e Acre, e que envolvem, respectivamente, empreendimentos de cana-de-açúcar, piscicultura e pecuária.
Além desses três casos, o MPF ofereceu ainda outras sete denúncias, sendo duas no Mato Grosso e cinco no Tocantins, que ainda aguardam análise da Justiça Federal quanto ao possível acolhimento.
A impunidade é um dos problemas mais graves associados ao crime da escravidão contemporânea. A preocupação quanto ao abismo entre o número de libertados - mais de 36 mil, de 1995 até hoje - e a quantidade de condenados foi manifestada inclusive pela Relatora Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Formas Contemporâneas de Escravidão, Gulnara Shahinian, durante visita recente ao Brasil.
"Ações exemplares correm o risco de serem ofuscadas pela impunidade de que gozam alguns proprietários de terra e empresas", comentou Gulnara. A relatora das Nações Unidas sugeriu o aumento da pena pelo crime de redução a condições análogas à escravidão para, no mínimo, cinco anos (o Código Penal atual determina de dois a oito anos) de reclusão.
Para Paulo Roberto Olegário de Sousa, procurador da República em Pernambuco, o aumento do número de denúncias de trabalho escravo passa por uma maior integração entre MPF, Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). "Passa pela integração do Ministério Público Federal às equipes de fiscalização. Fizemos isso uma vez e pudemos constatar in loco a gravidade do problema e o profissionalismo e seriedade do trabalho do grupo móvel de combate ao trabalho escravo".
Pernambuco
Paulo Roberto é autor da denúncia contra José Guilherme Queiroz Filho, diretor-executivo da Usina Cruangi S.A., de Aliança (PE). O empresário foi apontado como responsável pela redução à condição análoga à escravidão de mais de 250 trabalhadores (entre eles, 27 jovens com menos de 18 anos). Seis deles não possuíam sequer 16 anos de idade completos. A 4ª Vara da Justiça Federal no Estado aceitou a denúncia em 17 de junho último.
A Usina Cruangi "terceirizou" parte de sua produção de milhares de toneladas diárias de cana-de-açúcar a três intermediários, que mantinham 252 cortadores em condições degradantes. Os empreiteiros recrutaram mão de obra na região próxima à usina. Segundo integrantes do grupo móvel de fiscalização do MTE que estiveram na área, a empresa se eximiu de providenciar as estruturas necessárias e acordou com os "empreiteiros" (também conhecidos como "gatos", denominação corriqueira dos aliciadores de mão de obra) apenas o pagamento de R$ 8 por cada tonelada de cana cortada. Na prática, os "empreiteiros" repassavam o que "queriam" aos trabalhadores.
De cada R$ 28 (equivalente a três toneladas e meia de cana cortada) pagos pela usina, pelo menos R$ 13 ficavam livres para os "empreiteiros". Os outros R$ 15 hipoteticamente seriam destinados aos cortadores, mas o repasse não vinha sendo feito regularmente. Nenhum dos 252 cortadores tinha a Carteira de Trabalho e da Previdência Social (CTPS) assinada. A jornada tinha início às 4h da manhã, quando o ônibus buscava as pessoas em casa, e o corte seguia até às 17h, quando retornavam às suas residências.
De acordo com Paulo Roberto, mais denúncias de trabalho escravo verificados em Pernambuco serão apresentadas em breve à Justiça.
Sergipe
Outro caso aceito pela Justiça Federal - pela 6ª Vara em Sergipe - foi a denúncia contra o diretor da empresa Coenge - Comércio e Engenharia Ltda, João Everardo de Albuquerque Sampaio. O empregador é acusado de ter submetido trabalhadores a condições de trabalho escravo durante a construção de tanques para desenvolvimento da piscicultura em Três Barras (SE), em outubro de 2006. A obra havia sido contratada pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). A denúncia foi apresentada pelo procurador da República Eduardo Pelella e foi aceita em 12 de maio de 2010, um dia antes da data que comemora a Abolição da Escravatura.
"A fiscalização realizada pelo Ministério Público do Trabalho produziu provas muito contundentes de que aqueles trabalhadores estavam sim submetidos a condições análogas à de escravidão. O local de trabalho era insalubre e os trabalhadores não dispunham de equipamentos de proteção contra acidentes. Além disso, os alojamentos estavam em péssimas condições, sem energia elétrica, sem instalações sanitárias próximas e com chão de terra batida", explica o procurador Eduardo, autor do processo.
Os alojamentos eram improvisados, sem qualquer acomodação ou camas de madeira. As refeições eram preparadas no próprio local, sem a mínima higiene. As inadequações estendiam-se, inclusive, às instalações sanitárias, que ficavam distantes dos dormitórios e eram de chão batido.
Acre
A denúncia contra o pecuarista Francisco das Chagas Pedroza e o gerente Francisco Ferreira Pessoa foi aceita no início de junho. Os dois são acusados de manter um trabalhador e sua família em condições de escravidão na Fazenda Granada, no município de Bujari (AC). O caso foi apresentado pelo procurador da República Anselmo Henrique Cordeiro Lopes.
Na propriedade, o trabalhador de 18 anos era submetido há mais de três anos (de novembro de 2008 a abril de 2009) a condições precárias de saúde, higiene e segurança. A situação degradante atingia, ainda, sua companheira - de somente 15 anos de idade - e também um bebê com apenas dois meses de vida. Os três familiares moravam de forma precária e consumiam água imprópria; também não tinham acesso à alimentação adequada. O abrigo não contava sequer com instalações sanitárias.
O empregado trabalhava sem registro e, em cinco meses de trabalho, havia recebido míseros R$ 100. O capataz da fazenda mantinha em seu poder um caderno com anotações dos débitos (do trabalhador para com o patrão) relativos à alimentação e utensílios disponibilizados para a família. Os três integrantes da família viviam sob um barraco de lona cujo custo também era descontado do salário a ser recebido pelo trabalhador.
A situação foi descoberta pelo Conselho Tutelar de Bujari. A partir da ação do conselho, a Superintendência Regional do Trabalho do Acre (SRTE/AC) montou uma operação com apoio da PF e do MPT.
Reincidente
Em pouco menos de um ano, Caetano Polato foi denunciado duas vezes pelo MPF no Mato Grosso pelo crime de redução de pessoas à condição análoga à escravidão. Uma ação, proposta em abril de 2010, ainda não recebeu parecer da Justiça sobre o caso. E a primeira ação oferecida contra Caetano tramita na 5ª Vara da Justiça Federal desde maio de 2009.
Durante uma das fiscalizações realizadas pelo grupo móvel do MTE, em 2001, os fiscais libertaram 187 trabalhadores de condições de trabalho análogo à escravidão, da Fazenda Vale do Rio Verde, em Tapurah (MT). Os empregados foram aliciados no Maranhão e atuavam mais precisamente na catação das raízes da vegetação que ainda restava no solo de uma área desmatada para o plantio de soja, algodão e milho.
Os documentos dos trabalhadores foram retidos pelo empregador. Somado ao quadro de descumprimento com relação aos salários, as condições do alojamento eram precárias, de acordo com relatório do MTE. A jornada de trabalho ultrapassava 12 horas diárias, mas não havia pagamento pelas horas extras. Não havia camas nos alojamentos, e os trabalhadores dormiam em redes ou pedaços de madeira. Na ocasião, os fiscais também constataram servidão por dívida, já que os empregados compravam alimentos na cantina da fazenda por preços superiores ao de mercado e acabavam se endividando, passando a trabalhar para pagar as dívidas.
Tocantins
O MPF no Tocantins denunciou Volnei Modesto Diniz e Divino Pádua Diniz pela redução de três pessoas a condições análogas à de escravo em 2008. Agentes fiscais que estiveram na Fazenda Rio Parú, em Colinas do Tocantins (TO), constataram a situação. A denúncia já chegou à Justiça, mas ainda não houve parecer. "Acredito que o juiz ainda não analisou o processo", opina Victor Manoel Mariz, procurador da República responsável pelo processo.
Volnei Diniz é o proprietário da fazenda e o seu irmão, Divino, administrava o ímóvel à época e também se encarregava do aliciamento de mão de obra para o "roço de juquira" (limpeza da área para formação do pasto). Ambos, porém, dividiam as responsabilidades pela fazenda.
O grupo móvel de fiscalização se deparou com alojamentos precários, sem condições de habitabilidade. A água consumida pelos empregados vinha do mesmo córrego em que o gado bebia água. Os alimentos eram descontados do "vencimentos" dos trabalhadores. "O relatório de fiscalização dos auditores do trabalho encontra-se com robusto substrato probatório, incluindo fotos e depoimentos dos trabalhadores resgatados", opina Victor.
Na avaliação dele, uma das grandes dificuldades em casos como o denunciado "consiste na falta de opção de trabalho para os resgatados, que muitas vezes preferem não denunciar com receio de perder o trabalho". "A miséria e a falta de informação dos trabalhadores também pesam muito", completa.
Na visão do procurador, "a falácia de que se trata de uma questão cultural, que atinge até magistrados, também influencia a concretização das denúncias". Ele acrescenta que os relatórios das fiscalizações móveis e o trabalho realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) têm contribuído para que várias denúncias cheguem ao MPF no Tocantins.
Em março deste ano, o MPF de Tocantins ajuizou mais três denúncias de trabalho escravo, todas com base nas operações do grupo móvel. Os acusados são: Valdeci dos Anjos Brito, proprietário da Fazenda São Sebastião, no município de Colméia (TO); o proprietário da Fazenda Santa Cruz, em Porto Nacional (TO); e Flávio José dos Reis Freitas, dono da Fazenda São Marcos, em Cariri do Tocantins (TO). Em abril deste ano, mais uma denúncia foi oferecida contra a empresa Minasmar Limpeza e Conservação Ltda. Ao todo, cinco denúncias apresentadas à Justiça Federal aguardam apreciação.
(Por Bianca Pyl, Repórter Brasil, 19/07/2010)