Os quatro policiais mortos na localidade boliviana de Uncia, em maio, foram enterrados de bruços, como manda a tradição indígena, para que seus espíritos - ou ajayu - não tentassem se vingar, atrapalhando o pacato cotidiano da comunidade. Acusados de roubo e extorsão pelos indígenas, eles foram espancados com pedras e paus pelos moradores de Uncia até a morte.
Pelo menos um tinha graves queimaduras pelo corpo, provocadas por água fervente.
O que deu ao crime repercussão nacional foi a forma como os indígenas justificaram as mortes. Eles alegam que não fizeram mais do que aplicar a justiça comunitária, ou indígena, reconhecida pela Constituição de 2009 e consagrada pela Lei do Órgão Judicial, que o presidente boliviano Evo Morales acaba de promulgar.
Pela Constituição, os indígenas devem respeitar "o direito à vida" em seu território, mas ainda assim é difícil para o Estado boliviano estabelecer os limites da autonomia dada a essas comunidades. Por isso, o Congresso corre para aprovar uma lei que regulamente o sistema.
Principalmente a Bolívia, mas também outros países andinos, como Equador e Peru, enfrentam uma série de desafios ao reconhecer a justiça indígena. Primeiro, há quem acredite que aplicá-la é o mesmo que fazer justiça com as próprias mãos. Segundo, a autonomia indígena abre a possibilidade para o uso dos territórios desses povos para atividades ilegais. Por fim, se não houver limite, ela dá aval para castigos como o açoitamento e a amputação de membros.
No Equador, onde a justiça indígena é reconhecida pela Carta de 2008, Orlando Quishpe, de 21 anos, recebeu chibatadas de urtiga atado a um tronco por planejar uma briga que terminou na morte de outro jovem. Só não foi enforcado por causa dos apelos do presidente equatoriano, Rafael Correa. No início do mês, duas pessoas foram queimadas vivas na província de Orellana.
De acordo com o cientista político boliviano Carlos Cordero, na Bolívia também é difícil evitar esses abusos porque o governo idealiza a cultura indígena. "O risco dessa idealização é a aceitação de julgamentos sumários e castigos medievais", diz. "O governo está se apressando para regulamentar a lei da justiça indígena justamente porque percebeu que foi longe demais."
Os parentes dos quatro policiais mortos em Uncia reivindicaram os corpos, mas a comunidade negou-se a entregá-los. Os indígenas exigiam garantias de que os responsáveis não seriam levados à Justiça comum. Eles impediram a entrada de autoridades em seu território e só cederam com a intervenção de Evo. Ainda assim, fizeram um pacto de silêncio que impede o esclarecimento do crime.
"Não há pena de morte na tradição indígena. A pena máxima é a expulsão da comunidade", disse ao Estado Hugo Jimenez, do Conselho Nacional de Ayllus y Markas de Qullasuyu, que representa as comunidades das terras altas da Bolívia. Ele explica que na justiça indígena os casos são julgados por conselhos de anciões e as sentenças mais comuns são trabalhos comunitários. "Algumas pessoas fazem confusão entre linchamento e justiça indígena. Além disso, criminosos usam a justiça indígena para evitar punição."
No caso de Uncia, por exemplo, uma das suspeitas é a de que alguns indígenas estariam envolvidos em contrabando e viam na ação da polícia uma ameaça.
Casos de linchamentos sempre existiram na Bolívia e em outros países da região. Mas nos últimos anos se tornaram mais frequentes. Só em 2009 foram 30 mortes e 77 tentativas frustradas em território boliviano.
Em El Alto, cidade-satélite de La Paz, bonecos "enforcados" em postes carregam o aviso: "Ladrão será linchado". "A ausência do Estado, a pobreza e o narcotráfico estão causando um aumento dos casos de violência em certas comunidades", diz Cordero. "A justiça comunitária é usada para justificar esses abusos."
Dias após a morte dos quatro policiais, Santiago Flores, de 51 anos, foi apedrejado na localidade boliviana de Jununa, acusado de assassinato e abuso sexual. Há dois anos, outros três policiais foram linchados em Epizana e, em 2004, o prefeito de Ayo Ayo, localidade perto de La Paz, foi queimado em praça pública, acusado de corrupção.
(Por Ruth Costas, O Estado de S.Paulo, 10/07/2010)