Do quintal de Simon Kitra pode-se ver o segundo maior lago do mundo. O gramado da frente de sua casa se abre para um dos maiores rios do mundo: o Nilo. Se o pescador de 20 anos nascido em Uganda precisar se localizar na ilha onde vive, ele pode olhar para o obelisco na montanha, que marca o local onde o explorador britânico John Hanning esteve em 1862, com o objetivo de referenciar exatamente em que ponto o Lago Victória começa a perder vazão – a fonte do Nilo.
A água que sustenta Kitra – ele bebe dessa água, banha-se com ela, vende e come o peixe que nela vive – passa gentilmente sob sua canoa em sua viagem de 3.470 milhas para o Meditrerrâneo. Mas à noite, enquanto ele escuta o rádio antes de jogar sua rede novamente, as notícias sobre o futuro do Nilo têm um tom de raiva e recriminação – de sua origem mais remota, no Brundi, passando por todo o Egito. Reportagem de Xan Rice, no jornal The Guardian.
Os nove países pelos quais passa o Nilo vêm negociando há uma década o que fazer para dividir os recursos e proteger o rio em tempos de mudança climática, ameaças ambientais e aumento de população. Agora, com um acordo sobre a mesa, as conversas estão ficando mais ásperas. De um lado estão os sete estados que virtualmente abastecem a corrente do rio. Do outro estão Egito e Sudão, países de clima desértico para os quais o Nilo é indispensável. “Isso é sério”, disse Henriette Ndombe, diretora executiva do Nile Basin Iniciative, instituição intergovernamental estabelecida em 1999 para supervisionar o processo de negociação e cooperação. “Pode ser o começo de um conflito”.
O ponto crítico entre os dois grupos é uma questão que remonta aos tempos coloniais: a quem pertence a água do Nilo? A resposta de Kitra – “É de todos nós” – poderia parecer óbvia. Mas Egito e Sudão argumentam que a Lei está com eles. Tratados de 1929 e 1959, época em que a Inglaterra controlava boa parte da região, garantem aos dois países “utilização plena das águas do Nilo” – e o poder de vetar qualquer projeto de represamento no leste da África. Os países localizados rio acima, incluindo a Etiópia, fonte do Nilo Azul, que se mistura ao Nilo Branco em Khartoum, e garante 86% da vazão, não têm direito a nada.
Como o debate está sob o âmbito da legislação internacional, o Egito a defende com unhas e dentes, às vezes com ameaças de ação militar. Por décadas o País manteve um engenheiro nas Quedas de Owen, em Uganda, perto da ilhja onde mora Kitra, para monitorar a vazão do Nilo.
Mas em sinal de uma discórdia que só tende a aumentar, Uganda parou de abastecer o engenheiro com dados há dois anos, de acordo com Callist Tindimugaya, o comissário do País para regulação de recursos aquáticos.E quando o Egito e o Sudão re recusaram a assinar um acordo em abril, de “uso equitativo e racional” do Rio a menos que fossem protegidos seus “direitos históricos” os outros países perderam a paciência. Isaac Musumba, ministro de Estado de Uganda para assuntos regionais, e representante na comissão que trata do Nilo, disse: “Isso é loucura! Ninguém pode reclamar esses direitos sem obrigações!”. Minelik Alemu Getahun, um dos negociadores da Etiópia, disse que todos os países localizados ria acima viram o movimento do Egito como algo “equivalente a um insulto”.
Convencidos de que não havia propósito em continuar as negociações nessa toada, Uganda, Etiópia, Ruanda e Tanzânia assinaram a um esboço de acordo chamado Nile Basin Co-operative, em maio. O Quênia os seguiu e Burundi e a República Democrática do Congo estavam prestes a fazer o mesmo – causando temor e raiva no Egito. Quando parlamentos de seis países ratificarem o documento, uma comissão permanente irá decidir em que locais serão feitos projetos de captação de água do Rio – sem a participação dos dois países que mais precisam dele.
A oposição dos países localizados rio acima aos tratados da época colonial não são novas. A Etiópia rejeitou o acordo de 1959 que deu ao Egito três quartos da vazão anual do rio (55.5 bilhões de metros cúbicos) – e ao Sudão um quarto, mesmo antes do tratado ter sido assinado. A maioria dos Países do lesta da África também se recusa a reconhecer o tratado.
Em 1990 vários governos começparam a considerar seriamento o uso das águas do Nilo para geração de energia e para irrigação. Mas, quando os projetos de financiamento foram apresentados ao Banco Mundial e outras fontes, os problemas começaram a saltar aos olhos. “Nossos parceiros e financiadores perguntavam sempre o que os outros países banhados pelo Nilo pensavam a respeito”, disse John Rao Nyaoro, diretor de recursos aquáticos do Quênia.
Os diplomatas do Quênia, da Etiópia e de Uganda – países que têm pluviosidade de sobra – conhecem a dependência maciça do Egito das águas do Nilo. Mas não se conformam em deixar intocado um recurso tão valioso, com o crescimento da demanda por serviços ambientais do rio, puxada pelo aumento da população e pelas mudanças climáticas. A população do Egito – hoje de 79 milhoões de pessoas – deve chegar aos 122 milhões em 2050. Mas nos países rio acima o crescimento é maior ainda. Há 83 milhões de etíopes hoje, mas em 40 anos serão 150 milhões. Em Uganda, a média de filhos por mulher é 6.7, uma das maiores do mundo. Para Uganda, a prioridade é a geração de energia, e o País quer construir mais represas.
No acordo assinado pelos cinco países, as parcelas de recursos do rio ao qual cada um terá direito vai depender de variáveis como população, contribuição para o volume do rio, clima, necessidades sociais e econômicas e – principalmente – usos correntes e potenciais da água, um fator que vai favorecer largamente o Egito e o Sudão.
Tratados
Os acordos sobre a utilização das águas do Nilo remetem ao século 19, quando a Inglaterra, que controlava o Egito e o Sudão, assinou acordos com outras potencias coloniais como a Etiópia, para garantir o volume e a vazão da água. Mas, em 1929, um tratado bilateral foi mais longe. O Egito, que àquela altura já gozava de independência, e a Inglaterra, agindo em favor do Sudão e das outras colônias ao redor do Lago Victória, assinaram um acordo de direitos sobre a água. Ele reservava a vazão toda da estação seca para o Egito e permitia ao Cairo vetar qualquer projeto de desenvolvimento na bacia do Nilo.
Em 1959, o Egito e o Sudão, então recentemente independente, assinaram um acordo que deu a eles “utilização plena das águas do Nilo”. Usando a vazão anual do rio, de 84 bilhões de metros cúbicos, ficou acertado que o Egito teria direito a 55 bilhões e o Sudão a 18,5 bilhões. Os países localizados rio acima não foram contemplados com nenhuma percentagem.
(The Guardian, Estadao.com.br, EcoDebate, 28/06/2010)