A idéia de se desfazer do terreno da Fase para financiar a descentralização dos serviços de atendimento a menores delinqüentes no Estado tem pelo menos duas décadas, mas ninguém havia tomado providências para concretizá-la.
Desde o início do governo Yeda, no entanto, o secretário da Justiça e Desenvolvimento Social, Fernando Schüller, se empenhou no projeto. Foram quase três anos de trabalho. No início havia imprecisões até quanto à propriedade do terreno.
Mas, em dezembro do ano passado, estava pronto e encaminhado à Assembléia Legislativa o projeto de lei 388, que autoriza o Poder Executivo a vender ou permutar a área pública de 73,5 hectares, na Zona Sul de Porto Alegre, onde funciona a Fundação de Atendimento Sócio Educacional
A autorização para o executivo alienar a área era o que faltava para viabilizar a descentralização. A outra parte, o planejamento das novas unidades descentralizadas já está pronta, com planta, orçamento e tudo. São nove unidades e vão custar em torno de R$ 70 milhões.
A aprovação parecia tranqüila, no primeiro momento. Apresentado como “estratégico” e apoiado por diversas entidades ligadas aos direitos da infância e adolescência, o projeto encontrou receptividade nas bancadas alinhadas ao governo, cujos votos são mais do que suficientes – 32 num total de 55.
O texto chegou a obter parecer favorável do relator na Comissão de Constituição e Justiça e estava a caminho do plenário para votação no início de março. Mas as críticas, inicialmente restritas a deputados de oposição, se ampliaram em duas frentes.
A informação de que o morro seria vendido circulava há tempo entre os moradores das áreas ditas “invadidas”. A equipe que tentou fazer um cadastro das vilas já encontrou hostilidade declarada, em alguns lugares.
No início do ano, as associações de moradores começaram a mobilizar-se contra o projeto, que não considerava a situação deles, alguns vivendo ali há mais de 30 anos. São seis comunidades, que ocupam cerca de 20% do terreno.
O Semapi, sindicato ao qual estão filiados os 1540 trabalhadores da Fase, também acompanhava a evolução do projeto, há mais tempo talvez. Muitos funcionários da Fundação ganharam terrenos e moram lá dentro da área, alguns há 50 anos.
Quando viu o projeto avançar na Assembléia, o Semapi entrou em ação. Foi no sindicato que nasceu a campanha “O Morro Santa Teresa é Nosso”, que ampliou a mobilização do moradores.
A adesão do Cpers, o sindicato dos professores, em confronto com o governo Yeda, foi natural. Carro de Som, cartazes, faixas e até quentinhas para os piquetes na praça da matriz foram bancadas pelos sindicatos.
Ao mesmo tempo começou a circular na internet, e logo atingiu toda a rede de entidades comunitárias e ambientalistas da capital, um artigo da jornalista Cris Rodrigues e um relato do médico Guilherme Jaquet.
A jornalista chamava atenção para o valor paisagístico e ambiental do terreno. O médico, que se mostra bem informado, afirmava que tudo estava arranjado para repassar a área à Maiojama, a empresa imobiliária dos controladores da RBS.
No dia 11 de março, uma audiência pública lotou o auditório da Assembléia. Ao mesmo tempo em que, na praça, se estendiam as faixas e cartazes e se ouviam as primeiras palavras de ordem contra o projeto, chegou aos computadores do Piratini o conjunto de e-mails, que circulava nas redes como um “dossiê”.
No início de abril, o Executivo retirou o projeto para retificar. Retornou à Assembléia no dia 5 de maio, com alguns retoques e um “pedido de urgência”, ou seja, com 30 dias para ir à votação em plenário.
Nos reparos ao texto original, o governo garantia genericamente o direito dos moradores e o respeito às áreas de preservação ambiental, reconhecendo as críticas.
“As mudanças foram decididas em reuniões com todas as partes interessadas e as dúvidas sobre o projeto foram esclarecidas, vamos aprová-lo”, dizia o deputado Adilson Troca, líder do PSDB antes da primeira votação, quarta feira, dia 8 de junho.
“As alterações são insuficientes, o projeto continua inexplicável. Não há como evitar a suspeita de alguma coisa por trás desse negócio”, insistia o vice-líder petista, Raul Pont.
Nem Pont, nem os oposicionistas mais radicais questionaram em qualquer momento a proposta de descentralização dos serviços da Fase, que decorre de uma orientação do Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo.
A critica que persistiu foi à falta de informações, principalmente em relação ao terreno a ser alienado. “Não há sequer uma avaliação da área. Como é que vai se fazer uma licitação sem ter um preço mínimo?”, indagava Pont.
A avaliação existente (que não consta do projeto) foi feita pela Telear, uma empresa privada, que estimou em R$ 76 milhões o valor do terreno.
Raul Pont questiona essa avaliação: “Naquela mesma região, o antigo estádio do Inter, que tem pouco mais de 2 hectares, está avaliado em R$ 23 milhões. O terreno da Corlac, uma área pública, foi alienado por R$ 13 milhões e tem menos de um hectare. Por que o hectare nesse terreno da Fase, numa área mais nobre, vale tão menos?”
Mesmo considerando metade do terreno comprometida por áreas de preservação ambiental e moradores irregulares, o deputado petista considera o valor aviltado.
O governo alegava que sua intenção com o 388 é aprovar apenas o princípio – a permissão para que o executivo disponha do terreno para financiar as nove unidades da descentralização.
Os detalhes da transação, diziam os representantes do governo, estarão no edital da licitação, que será um processo público. Nos acréscimos que fez ao texto original, o governo incluiu também um “comitê externo” para acompanhar toda a licitação e garantir sua lisura.
Ocorre que o debate parlamentar iniciou com o foco na falta de informações sobre a situação do terreno e sobre o que se pretende fazer com ele. Mas aos poucos deslocou-se para a própria questão da real necessidade de se desfazer de um patrimônio para financiar a descentralização.
Na hora da votação, o questionamento mais forte era esse: o único modo de viabilizar o projeto é entregar ao mercado imobiliário uma área pública valiosa, num ponto privilegiado da cidade?
Os oposicionistas, com base em informações do próprio governo, questionaram a alegada falta de dinheiro e apontaram várias alternativas para financiar a descentralização.
No final, até o deputado Nelson Marchezan Jr., do partido da governadora, rebateu o argumento da falta de dinheiro para financiar as nove unidades descentralizadas, estimadas em R$ 70 milhões. “É evidente que não falta dinheiro para uma obra dessas”, disse Marchezan depois de citar inúmeras alternativas para obtenção dos recursos.
Para culminar, o Ministério Público, através da Promotoria da Habitação e Defesa da Ordem Urbanística, recomendou ao governo que retirasse a urgência do projeto, uma vez que ele se choca com uma Ação Civil Publica em andamento, exatamente para regularizar a situação dos moradores das áreas invadidas.
As invasões já ocupam quase 20% do terreno e o número de moradores irregulares ninguém sabe ao certo. As estimativas vão de 1.500 a 5 mil famílias.
No dia da primeira votação, cerca de 200 desses moradores postaram-se desde cedo na entrada do Palácio Farroupilha, num protesto organizado por sindicatos e movimentos sociais, com carro de som, bateria improvisada, palavras de ordem e musicas de protesto.
Na hora da votação, representantes das seis vilas incrustradas no terreno lotaram as galerias do plenário e sua pressão certamente teve a ver com o resultado.
Muitos deputados governistas faltaram à sessão alegando compromissos anteriormente assumidos, já que a votação era prevista para o dia anterior. É provável que estivessem também fugindo da vaia popular, que certamente receberiam os que votassem a favor do projeto.
Os arranjos pré-eleitorais também influíram na debandada. O comportamento da bancada do PP, com nove deputados, foi o maior sinal disso. O partido negociava a indicação do vice para a chapa de Yeda Crusius. Apenas três de seus representantes ficaram no plenário.
Resultado: quando a oposição decidiu se retirar, faltaram dois votos para o quorum mínimo para a votação, que é de 28 deputados.
O projeto de lei 388 passou para a pauta da sessão seguinte, na quarta-feira, 16. mas não chegou a ser votado, por causa da morte do deputado Bernardo de Souza. Na segunda-feira, 21, o governo jogou a toalha e anunciou a retirada do projeto.
Dúvidas quando ao número de moradores
Em 2008, já com o intento de permutar ou vender a área, o governo tentou fazer um recenseamento da população que ocupa as partes invadidas.
Quatro comissões percorreram as vilas para cadastrar os moradores. Enfrentaram a resistência das associações comunitárias, sem falar dos redutos dominados pela criminalidade. “Foram recebidas a tiro em alguns lugares”, conta o presidente.
Por essas dificuldades, ele acredita que o levantamento subestimou o número de moradores nas três vilas identificadas. Foram contadas 760 famílias, mas Souza estima que devem ser mais de 1.500. “Multiplique por cinco/seis em cada família, dá oito nove mil pessoas”.
As associações comunitárias estimam em 20 mil pessoas o número de moradores, não em três mas em seis comunidades. Além das que o governo enumera – vilas Gaúcha, Ecológica e Prisma – eles contam mais três: Padre Cacique, Figueira e Barracão. No conjunto, elas representam quase 20% da área.
A menor é a Vila Padre Cacique que tem 42 residências no entorno dos prédios da Fase, onde vivem 126 funcionários, ex-funcionários e familiárias de ex-funcionários já falecidos. Algumas famílias estão ali há mais de 50 anos. “Fomos autorizados a ir para lá, nossa vida foi construída lá, agora querem nos jogar na rua?”, reage Luiz Carlos Domingues Soares, presidente da associação dos moradores.
A maior é a vila Ecológica, mas o número certo de seus moradores ninguém sabe. É espalhada, recebeu o nome porque se estende por uma grande área da preservação permanente. A mais violenta é a Gaúcha. Em alguns redutos dela, nem com escolta da BM os pesquisadores conseguiram entrar.
Dúvidas quanto ao tamanho da área
O presidente da Fase, Irani Bernardes de Souza, diz que a área exata de propriedade da fundação é de 73,5 hectares. O número divulgado no início, de 74 hectares, incluia o lote de meio hectares que foi vendido em 1976 para a, então, TV Guaíba, hoje Record.
As invasões, que também se intensificaram a partir dessa época, hoje ocupam 17,9% da área – são três núcleos principais e uma extensão da Vila Cruzeiro que avançou por uma borda do terreno.
Além das invasões, tem as áreas de preservação ambiental. Elas não estavam sequer identificadas até 2008, quando a Fundação Zoobotânica fez o primeiro inventário ambiental do terreno. Não foram delimitadas ou medidas as áreas de preservação.
Em todo o caso, foram considerados 35 hectares como sendo área livre e essa foi, segundo o presidente, a dimensão considerada no cálculo que estimou o valor do terreno em R$ 76 milhões.
“Branco, 17 anos, drogado”
A Fase tem muito pouca visibilidade, embora seja uma área de tensão. Fisicamente ela é quase invisível, por trás das árvores que cercam o terreno, diante da orla do Guaiba. Vê-se a parede azul do casarão principal entre o verde e vê-se o teto dos que estão mais no alto do morro.
Irani Bernardes de Souza, 50 anos, tenente-coronel aposentado da Brigada Militar, é o presidente desta Fundação Estadual, que cuida de menores fora da lei. Formado em direito e administração, com especialização na UERJ, tem duas décadas de vivência na área. Foi multiplicador do Estatuto da Criança e do Adolescente e chefe do Serviço Social da BM. Desde março de 2008 está na Fase.
Ali estão internados jovens infratores com idade entre 12 e 21 anos. São seis unidades na capital, concentradas no terreno da avenida Padre Cacique. Ali está também a única unidade feminina do Estado, com 36 meninas.
No início de junho, a fase tinha nas seis unidades da capital 577 internos (152 a mais do que a lotação prevista). Já teve 640.
Quem são? “Jovens da periferia”, diz o presidente. Este ano os maiores de 16 anos vão votar. Perfil típico: “Branco, 17 anos, roubo armado, quinta série, sem pai ou figura paterna ausente, drogado”. Ainda predominam maconha e cocaína, mas o crack ganha terreno rapidamente.
São vários os níveis de atendimento aos menores delinquentes, desde a prisão/isolamento para os casos mais graves, até a liberdade assistida, quando o infrator tem o acompanhamento de assistente social junto à família.
Segundo o presidente, o novo modelo de unidade foi elaborado com participação de várias secretarias, coisa incomum. Aprovadas em Brasília, as plantas estão de acordo com a política nacional ditada pelo Sinase – Sistema Nacional de Atendimento Sócio Educativo.
O novo modelo prevê 90 internos por unidade, no máximo. Muros altos, de sete metros, posto da Brigada, guaritas, quadras de esporte, horta. O presidente diz que já estão definidos os locais para as novas unidades na capital. Ele não pode divulgar os locais para não gerar protestos das comunidades.
A descentralização vai requerer uma ampliação no quadro funcional. O plano de cargos da Fase prevê 1.700 funcionários, mas ela tem no momento 1540. Está previsto um concurso este ano. Com a descentralização será inevitável.
Seis casas em Porto Alegre, onze no interior para atendimento de menores infratores
CAPITAL
CIP Carlos Santos 108
Case Padre Cacique 51
CSE 108
CASE POA 1 135
CASE POA II 158
CASE Feminino 28
TOTAL 588
INTERIOR
Caxias 67
Santa Maria 44
Novo Hamburgo 79
Passo Fundo 70
Pelotas 51
Santo Ângelo 36
Uruguaiana 49
Caxias 12
Santa Maria 14
São Leopoldo 13
Santo Ângelo 5
Interior: 440
Total 1028
Capital : faltam 183 vagas
Interior : 40 vagas disponíveis
Fonte: Fase
(Jornal JÁ, 23/06/210)