Fome, frio e escravidão por até 14 anos. Esse foi o quadro encontrado pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiás (SRTE/GO), pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Polícia Federal (PF) em duas ações realizadas entre 24 de maio e 12 de junho deste ano.
Ao todo, 102 pessoas foram libertadas de condições análogas à escravidão nas atividades de retirada e coleta de grãos das espigas de milho e de extração de areia para obras de construção civil.
Uma das ações encontrou 99 pessoas submetidas ao trabalho escravo que atuavam em diversas fazendas no estado de Goiás da empresa Du Pont do Brasil S.A - Divisão de Sementes Pioneer.
As vítimas foram aliciadas "gatos" (intermediários de mão de obra) em Palmeirais (PI) e São Francisco do Maranhão (MA), de onde saíram no dia 10 de abril. Elas foram atraídas por um chefe de turma conhecido como "Mozar" e levadas em ônibus fretado até a Região Centro-Oeste. Os custos do transporte (R$ 18 mil) seriam posteriormente cobrados dos trabalhadores. As Carteiras de Trabalho e da Previdência Social (CTPS) não foram assinadas no local de origem (foi feito somente após a chegada em Goiás) e o empregador também não emitiu a Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhador (CDTT) ainda no local de origem dos empregados.
Quando chegaram nos alojamentos em Joviânia (GO), os trabalhadores foram distribuídos em cerca de 20 pontos distintos, sem nenhuma estrutura. "Os barracos não tinham móveis, nem sequer camas. Os trabalhadores trouxeram só pertences pessoais", explica Roberto Mendes, auditor fiscal que coordena o grupo de fiscalização rural da SRTE/GO. As vítimas dormiam em colchões velhos ou espumas dispostas no chão, sem roupas de cama ou cobertores, em espaços comerciais já utilizados no passado como bares.
"Esses trabalhadores dormiam no chão, passavam muito frio e até fome. As moradias não possuíam asseio e higiene. Os banheiros eram imundos, dentre outras irregularidades", detalha o auditor fiscal.
A jornada de trabalho se iniciava às 4h da manhã, quando o serviço era em fazendas mais distantes, ou às 5h, quando a distância era menor, e se estendia até às 18h. "Eles não recebiam alimentação e tinham que se virar para comprar e preparar a comida, que era escassa", completa Roberto.
Todos tinham as carteiras assinadas pela empresa Pioneer, fundada nos EUA, que mantinha cerca de 900 trabalhadores rurais temporários em diversas fazendas em Joviânia (GO), Edéia (GO), Goiatuba (GO), Indiara (GO), Morrinhos (GO), Paraúna (GO), Acreúna (GO) e São João da Paraúna (GO).
"Não se pode afirmar, ao certo, que essa contratação teve ou não a conivência da empregadora Pioneer. Por outro lado, não se pode negar que, ao proceder assim, o chefe de turma Mozar o fazia em nome da empresa, uma vez que possuía plena liberdade na escolha e formação de suas equipes, ou seja, era quem de fato contratava", analisa Roberto.
Na opinião do auditor fiscal, a empregadora deveria ter observado as normas legais vigentes em relação a contratação de empregados de outras regiões. "Além disso, deveria também ter fornecido a tais trabalhadores alojamentos em condições dignas, bem como refeições fartas e sadias".
Inicialmente a empresa se recusou a aceitar as determinações do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Depois, contudo, aceitou fazer os pagamentos referentes às verbas rescisórias e pagar as passagens de volta dos mesmos. O valor total pago pela Pioneer foi de R$ 300 mil.
A situação só foi descoberta graças à denúncia de um dos trabalhadores para a Federação dos Trabalhadores Agrícolas do Estado de Goiás (Fetaeg) que, por sua vez, acionou a fiscalização. O denunciante conta ter passado frio e fome por mais de um mês (de 15 de abril a 24 de maio).
Em nota enviada à Repórter Brasil, a empresa envolvida disse que "está estudando o teor dos Autos de Infração recebidos em 03/06/2010 e que oferecerá resposta dentro do devido prazo legal, comprovando que cumpre toda a legislação aplicável". "Em respeito à qualquer alegação de irregularidades, a Du Pont reitera que sempre pautou suas atividades pelo respeito às leis, ao meio ambiente e à saúde, segurança e integridade de seus funcionários em seus mais de 200 anos de história", completa.
Areia
Quase uma década e meia num barraco improvisado com restos de madeira, folhas de palmeiras e lonas plásticas velhas, sem instalações sanitárias ter espaço limpo para cozinhar. Fiscalização realizada em cinco dragas de extração de areia nos Rios Verde e Monte Alto, há cerca de 15 km da cidade de Mineiros (GO), na Fazenda Rio Verde do Monte Alto, flagou um trabalhador há longos 14 anos nesta situação e outros dois que enfrentavam cotidiano semelhante por pelo menos sete primaveras.
A situação dos barracos às margens do rio na propriedade de José Flávio de Carvalho Primo, conhecido com Zé do Orestes, era inaceitável, classifica Roberto. "As paredes eram de pau-a-pique, os pisos de terra e areia. As camas eram improvisadas com madeiras roliças e pedaços de tábuas. Os colchões, velhos e sujos, tinham forte odor", descreve.
Não havia instalações sanitárias ou chuveiros no local. Os trabalhadores não tinham acesso a cozinha para preparar alimentos. Fogões improvisados ficavam dentro dos barracos. "Os trabalhadores relataram que havia ratos, escorpiões e baratas nos alojamentos", acrescenta Roberto.
Além dos problemas trabalhistas encontrados, a questão ambiental também estava irregular, conforme constatou a fiscalização. De todas as dragas de extração de areia, apenas uma possuía autorização ambiental. Já em relação ao credenciamento junto a Diretoria de Portos e Costas (DPC) da Marinha, todas estavam irregulares. Todas as dragas foram interditadas.
Para a exploração da atividade, cada dono de draga utiliza diretamente dois trabalhadores, que se revezam nas atividades de operador de draga e mergulhador. "A retirada de areia do rio é feita através de uma draga flutuante de sucção. Esta máquina é responsável pela captação da areia no fundo do rio, através de um ´mangote´ direcionado por um mergulhador. A areia é dragada e bombeada para um caixa que fica ao lado do rio, onde é depositada e retirada, posteriormente", relata o auditor fiscal do SRTE/GO.
Os empregados chegam a trabalhar cerca de 1h a 4h a cada mergulho, a uma profundidade de até 5 metros ou mais. Ninguém possuía curso de mergulhador ou foi submetido a exames médicos específicos para a função, conforme determina a Norma Regulamentadora 15 (NR 15).
Os empregadores Abner Jesus Moreira e Abimael Jesus Moreira, responsáveis pelo empreendimento, pagaram as verbas rescisórias aos trabalhadores, que foram embora para casas de parentes no estado.
(Por Bianca Pyl, Repórter Brasil, 17/06/2010)