O texto conta uma farsa: Belo Monte vai gerar energia para o povo pobre e excluído da Amazônia. Apesar de não ser original, o método é eficiente e bem bolado, pois a mentira contida no corpo do texto não está escrita. O leitor não lê a mentira. Ele apenas a imagina.
É um artifício muito engenhoso, pois permite aos defensores do governo negar qualquer acusação, uma vez que nada está escrito. Ou seja, elabora-se um texto que induz o leitor a acreditar em algo que não leu, mas imaginou, em razão da associação de palavras e temas envolvidos. A má intenção dos responsáveis pela publicação do artigo fica explícita quando se percebe a manobra.
E o propósito é justamente permitir ao leitor desatento a construção mental de uma afirmação que não está visível aos olhos, pois não está digitada. E a dificuldade é transferida ao leitor crítico, que precisa provar que uma idéia foi formulada, sem que esta esteja escrita. Complicado? A princípio pode parecer, mas não é tão difícil perceber a tentativa de enganar a população que acessa um instrumento de comunicação oficial do governo de uma unidade federativa.
Vejamos o título: “Luz Para Todos garante energia ao Xingu antes de Belo Monte”. Em nenhum momento está escrito que a construção do AHE Belo Monte irá gerar energia para o programa Luz Para Todos. Mas é justamente essa a mensagem que se quer passar: que existe uma relação direta entra a construção da hidrelétrica de Belo Monte com a eletrificação das propriedades rurais da região da Volta Grande do Xingu.
Entretanto, isso não pode ser escrito, pois é uma enorme mentira. Então, não se escreve. Mas se faz uma composição de palavras que permite ao leitor desatento interligá-las e formular a idéia que se pretende manipular: Luz Para Todos + Xingu + Belo Monte = Belo Monte vai gerar energia para a minha casa. Bastante inteligente, mas muito pouco ético.
A matéria é constituída por oito parágrafos. Intencionalmente, o primeiro e os dois últimos fazem referência a Belo Monte, além do título. Pretende-se que o leitor desatento inicie e termine a leitura achando se tratar de um artigo sobre a geração de energia por Belo Monte. Todavia, os cinco outros parágrafos referem-se à extensão dos programas de eletrificação rural do governo federal, cuja energia será transmitida a partir de linhões de alta tensão indo de Tucuruí, no rio Tocantins, até a Ilha do Marajó. Nada a ver, portanto, com o rio Xingu, Belo Monte ou a região de Altamira.
Mas o texto tem a intenção de forjar mais esta calúnia. O primeiro parágrafo é esclarecedor. Fala em um investimento de R$ 550 milhões para “assegurar energia para 20 mil residências da região”. E novamente a associação de palavras gera uma equação matemática pouco confiável: investimento + Luz Para Todos + Xingu + Belo Monte = energia para vinte mil famílias.
O paradoxo de Tucuruí não será evitado, como afirma o governo estadual. Ele vai se repetir, pois o objetivo de Belo Monte não é gerar energia para as comunidades locais. E isto está explícito nas conclusões do EIA/RIMA. Os moradores dos municípios vizinhos a Belo Monte farão o mesmo que seus pares de Tucuruí: vão olhar para cima e ver o linhão passar, enquanto suas casas ficam sem luz.
A “esperteza” do governo é prometer energia elétrica, sem dizer de onde virá, nem quando estará disponível, fazendo crer, com o jogo de palavras, que ela virá logo, em razão da construção de Belo Monte. Lendo o escorregadio artigo, tem-se a impressão de que será construído um linhão para levar energia de Tucuruí para Altamira e entorno. Mas não há nada afirmando isso. E quando seria? Após a conclusão da primeira e segunda etapas do Linhão do Marajó? Apenas a título de informação: o anúncio do início da obra ocorreu em 19/03/2009; o lançamento da primeira etapa, em 25/09/2009; e o início do levantamento topográfico para a definição do local de instalação das torres, somente em 06/05/2010. Isso apenas da primeira etapa do Linhão do Marajó, com previsão de ser concluído em 18 meses.
Supondo que o linhão para o Xingu seja construído somente após o do Marajó, no ritmo atual, a energia chegaria em Altamira em meados de 2016. Isso se os prazos forem cumpridos. Interessante, é que na página do Luz Para Todos, na internet, fala-se que durante a execução do programa (2003-2008) foram localizadas “novas famílias sem energia elétrica em casa”, fato que ocasionou a sua prorrogação, “para ser concluído no ano de 2010”. Isso nos deixa com algumas dúvidas: ou essa estória tem número demais ou tem informação de menos.
O leitor mais atento pode fazer uma séria crítica ao parágrafo acima, pois o Linhão do Marajó não está incluído no Programa Luz Para Todos, mas sim no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. E essa é mais uma confusão proposital observada na matéria veiculada na página do governo estadual. Como as obras do PAC ainda estão em execução, sendo que algumas nem saíram do papel, é mais interessante canalizar as informações sobre a ampliação do fornecimento de energia para um programa que será encerrado dentro do período de gestão do atual governo de Ana Júlia. Tenta-se dar a impressão de que todas as obras de eletrificação rural estão relacionadas ao Luz Para Todos e, portanto, serão concluídas ainda no atual mandato. E isso é especialmente oportuno para um chefe do Executivo que busca a reeleição no final deste ano.
Depois de viajar pelo Marajó, os dois últimos parágrafos retornam às informações sobre Belo Monte. Um olhar minucioso aos números apresentados enterra, em definitivo, a farsa de dizer que a hidrelétrica no Xingu será responsável por fornecer luz para as residências da população local. Se considerarmos os 11 mil MW supostamente gerados nos meses de cheia do rio, a reserva de 20%, que ficará no Pará, segundo afirmação do governo, seria suficiente para atender a demanda de 1.200 MW necessários para o funcionamento das duas indústrias de alumina que se instalariam no estado e ainda sobraria. Se considerarmos os 4 mil MW de média mensal, a conta é outra: 20% de 4.000 são 800 MW. Ou seja, vai faltar energia, não sobrar. Traduzindo: a hidrelétrica de Belo Monte não vai gerar energia para as residências dos municípios do Xingu, mas sim para as grandes indústrias do estado e de outras regiões do país. Isto é o que dizem os números do próprio governo.
Por fim, vamos fazer um exercício de paciência, e com extrema boa vontade, acreditar que o título do texto governista fale a verdade e será garantida energia aos municípios vizinhos de Belo Monte, antes mesmo da construção da hidrelétrica. Ora, mas o discurso daqueles que são favoráveis ao projeto da barragem no Xingu não é, justamente, de que Belo Monte é essencial para levar energia e desenvolvimento para Altamira e região? O próprio governo estadual acaba de desmenti-los, pois está prometendo levar energia para os municípios do Xingu, sem a necessidade de construir o Belo Monstro.
Mauricio Santos Matos, licenciado em Artes, servidor público do estado, membro do Comitê Metropolitano Xingu Vivo Para Sempre
(EcoDebate, 14/06/2010)