“O boi deveria ser o animal de estimação dos brasileiros.” Com esse princípio, recitando poesias, atacando os ambientalistas e fazendo citações com uma elasticidade que abrigava de Karl Marx ao papa Bento 16, de Malthus a Josué de Castro, do Padre Vieira a José Bonifácio e de Geraldo Vandré a Luiz Gonzaga, o deputado Aldo Rebelo (PC do B/SP) finalmente começou, nesta terça-feira, dia 8 de junho, a apresentar ao público mais amplo – porque os ruralistas já conheciam – o projeto para modificar o Código Florestal brasileiro.
A leitura será retomada nesta quarta-feira, 9 de junho, às 14 horas. O relatório foi elaborado com assessoria da advogada Samanta Piñeda, consultora jurídica da Frente Parlamentar da Agropecuária, que, segundo a imprensa, recebeu R$ 10 mil pelo trabalho.
Foram quase quatro horas de devaneios históricos. Por volta das 18 horas – a sessão tinha começado às 14h30, – o próprio relator, diante do visível desconforto da platéia, definiu o documento como enfadonho.
O interesse pela leitura havia lotado dois plenários, um deles apenas com telão e som. Apesar de Rebelo não chegar ao ponto essencial do texto – o deputado Edson Duarte (PV-BA) definiu a fala do relator como “uma aula de história e não uma leitura de relatório” – cópias do documento foram distribuídas durante a sessão e permitiram às organizações socioambientalistas comprovarem o que temiam. Alguns deputados também.
“Esse relatório é parcial, malfeito e representa um retrocesso absoluto na legislação ambiental”, afirmou Sarney Filho (PV-MA). Para ele, a comissão constituída para analisar as propostas de mudanças “é desigual e francamente a favor do agronegócio.”
O deputado Ivan Valente (Psol-SP), reclamou da não realização de audiências aprovadas pela comissão especial que visavam reunir opiniões mais amplas sobre o tema. “Incluímos até os presidenciáveis e as propostas deles,a Procuradoria Geral da República e outros especialistas. Mas a bancada do agronegócio é muito forte nesta comissão. Eles simplesmente suspenderam todas as audiências públicas e vieram direto ao relatório agora.”
ISA aponta pontos preocupantes
O texto do projeto é longo. Ao contrário do anunciado, não traz qualquer grande novidade no sentido de aprimorar a lei. Praticamente todas as mudanças vão no sentido de flexibilizá-la, sem trazer qualquer medida para que ela possa proteger melhor os rios, os morros, a biodiversidade.
O advogado Raul do Valle, do ISA, leu o relatório e destaca os principais pontos que preocupam a sociedade:
a) Possibilidade de anistia para desmatamentos ilegais em APPs ocorridos até julho de 2008: os governos estaduais poderão definir, com base em “estudos técnicos”, áreas com atividades “consolidadas” – mesmo que tenham sido abertas há dois anos – onde não será necessário recompor a vegetação nativa.
b) Desoneração de Reserva Legal para imóveis com até quatro módulos fiscais: independentemente de ser agricultor familiar, todo imóvel com menos de quatro módulos estaria desonerado de ter RL, o que abriria a brecha para que grandes fazendas fossem artificialmente desmembradas em várias matrículas para que ficassem isentas de ter áreas protegidas. Isso significaria, na Amazônia, uma imensa brecha para aumentar o desmatamento legalizado e no restante do país, o fim da possibilidade de recuperação de biomas já extremamente ameaçados, como a Mata Atlântica.
c) Permissão para que os municípios passem a autorizar desmatamento: o que hoje é feito pelos governos estaduais – com problemas graves em alguns casos, como o do Mato Grosso – passaria aos municípios, locais onde a pressão econômica para autorizar os desmatamentos, sobretudo nas áreas de fronteira agrícola, são muito maiores.
d) Congelamento da obrigação de recuperar até a realização de Programas de Regularização Ambiental pelos estados: a partir da publicação da lei ninguém mais teria que recuperar nada, e inclusive os termos de compromisso de recuperação assinados com os órgãos ambientais perderiam validade, até que, porventura, os governos estaduais façam programas de regularização, que por sua vez podem diminuir o tamanho das APPs, da RL ou mesmo desobrigar os proprietários de recuperar essas áreas.
e) Proibição de desmatamento, por cinco anos, em áreas de floresta: essa medida, adotada para “equilibrar” a proposta, além de vir desacompanhada de qualquer outra que venha lhe dar alguma efetividade, o que a torna pura ficção, ainda permite que nas áreas de cerrado ou pantanal, onde o ritmo de desmatamento é maior, este possam continuar. Além disso, quem tiver protocolado pedido para desmatamento antes da publicação da lei teria “direito adquirido a desmatar”.
Deputado acusa parcialidade
Logo depois da suspensão da sessão de terça-feira, o deputado Ivan Valente disse que não tinha previsão sobre os prazos para discussão e votação do relatório em plenário. “Vai depender do governo. O governo está aceitando as pressões dos ruralistas. Na minha opinião, o governo está acovardado frente a isto aqui. O Ministério do Meio Ambiente desapareceu do debate. A pressão dos ruralistas é para que seja votado antes do processo eleitoral para chantagear o governo em muitas questões. Muitos deputados da comissão são do PMDB, como o Valdir Colatto, o Micheletto, que têm força para pressionar o governo para fazer exigências dentro do PMDB.”
Valente disse que estranhou a contratação de uma consultora ligada ao agronegócio para ajudar na elaboração do relatório. “Eu pedi a oitiva dela aqui na comissão porque nesse episódio faltou impessoalidade. Ela tem lado, tem compromissos. Nessa condição, ela veio aqui para fazer o relatório do agronegócio. E foi paga por isso com dinheiro público. Ela não é uma cientista, ela é uma pessoa que trabalha para a frente da agropecuária, para a CNA. Sinto muito que o relator tenha aceito esse tipo de proposta.”
Para o deputado do Psol, só uma grande mobilização pode mudar o panorama. “Só se houver pressão de opinião pública, da imprensa da sociedade civil a partir do relatório real e não das entrevistas do relator, e com essa pressão criar-se uma situação de fato para impedir a votação ou prorrogar o prazo de votação para melhor debate sobre as propostas.”
O deputado Edson Duarte (PV-BA) afirmou que a bancada ruralista deve usar até do expediente de obstrução do plenário para forçar votação e aprovação do relatório. “Estamos em época de copa do mundo, festas juninas, período eleitoral, o que significa problemas de quórum na Câmara. Mas a bancada rural tem a força de pautar e garantir quorum suficiente para a matéria ser votada.” O deputado do PV baiano entende que as lideranças partidárias precisam se definir diante da questão: “O presidente Michel Temer, que é do PMDB, patrocinou hoje (terça, dia 8) uma sessão em homenagem ao meio ambiente. E quem está patrocinando aqui este relatório, este desmonte da legislação ambiental, é também o PMDB. Qual é a posição do partido? O Moacir Micheletto (PMDB-PR e presidente da Comissão Especial do Código Florestal)representa o PMDB.”
Para o deputado, a flexibilização da lei proposta pelo relatório é o fato mais grave. “Permite conveniências locais. Principalmente as conveniências políticas e pressões econômicas. E sem falar de penduricalhos, como anistia, moratória, permissão de recomposição de áreas com espécies exóticas.” E não é só, segundo ele: “O mais grave é o faz-de-conta do debate. Esse debate não está sendo feito com a sociedade. Essas audiências públicas foram montadas para legitimar uma decisão que já estava pronta. Esse relatório é um acordo, um acerto entre o relator e a bancada ruralista”, disse Duarte.
O argumento que defende a necessidade de mudar o código para aumentar a produção agropecuária também é criticado pelo parlamentar baiano: “Esse discurso é um pepino pode sair pela culatra. Eles podem flexibilizar a legislação para aumentar a produção e não ter a quem vendê-la por causa do boicote que as nações do mundo farão ao produto brasileiro, em decorrência do desmatamento que o Código vai permitir.”
A leitura do relatório continua hoje, no plenário 9 da Câmara, a partir das 14 horas.
Acesse o site www.sosflorestas.com.br, que amplia as informações sobre o debate em torno do Código Florestal.
(Por Julio Cezar Garcia, ISA, EcoDebate, 10/06/2010)