“Trabalhos feitos por ONGs, as próprias unidades móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho, e a lista suja, que discrimina empresas e produtos manchados pelo trabalho degradante, são experiências que levarei a outros países”, disse Gulnara Shahinian
[Reportagem de Cristiano Morsolin, para o EcoDebate] Na semana em que foi protocolado na Câmara dos Deputados um abaixo-assinado apoiado por 280 mil pessoas em favor da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 438/2001, que determina o confisco de terras para destiná-las à reforma agrária onde houver flagrante de trabalho escravo, a Organização das Nações Unidas (ONU) cobrou mais empenho do país em relação ao problema. Em visita ao Brasil, a relatora especial da entidade para formas contemporâneas de escravidão, Gulnara Shahinian, adiantou os principais pontos do relatório que apresentará publicamente em setembro.
Ela recomendará mudança na legislação para punir de forma mais dura os criminosos; que a Justiça Federal assuma os casos, no lugar da instância estadual; ampliação dos grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho; e proteção para os agentes do Estado que trabalham enquadrando os exploradores. Gulnara também insistiu na aprovação pelo Congresso da PEC do Trabalho Escravo, como ficou conhecida a matéria. “Espero que esse documento tão importante para o combate a uma mazela inaceitável seja ratificado em breve pelos parlamentares”, disse a relatora.
Segundo a relatora da ONU, as regiões de Mato Grosso, Pará e Maranhão parecem ser os locais mais vulneráveis. Ela destacou, entretanto, que na área urbana do país também há casos graves de trabalho forçado, especialmente no setor de confecção de roupas. Até meados de maio deste ano, o Ministério do Trabalho libertou quase 700 pessoas da condição de escravidão — média de cinco por dia. “Vi e ouvi relatos muito dramáticos de pessoas que passaram por essa experiência violadora de direitos humanos”, lamentou.
O deputado Paulo Rocha (PT-PA), principal articulador da PEC do Trabalho Escravo no Congresso, que precisa apenas da aprovação em segundo turno na Câmara para ser encaminhada à sanção presidencial, está tentando costurar um acordo com todos os partidos antes de a matéria ir a plenário. “Não adianta colocar em votação e perdermos. A bancada ruralista tem muita força e fará tudo para derrubar a matéria. É preciso negociar antes”, destaca o parlamentar. De 2005 a 2009, segundo Gulnara, cerca de 38 mil pessoas foram libertadas no Brasil. A estimativa é de que haja entre 25 mil e 40 mil nessa situação no país. “Os dados podem ser apenas a ponta de um iceberg, já que estamos falando de algo ilegal, portanto difícil de medir”, diz.
Para ela, se a Justiça Federal no Brasil assumir os casos de exploração sexual, é provável que os responsáveis sejam punidos de forma mais efetiva. “Preciso estudar melhor o sistema judiciário brasileiro, mas me parece que, deixando a cargo dos estados, os processos levariam mais tempo para serem finalizados. Outro problema está nas testemunhas, muitas vezes ameaçadas e até assassinadas no curso das ações”, diz a relatora da ONU.
Gulnara afirmou também que uma legislação mais dura para quem submete alguém a trabalho escravo poderia ajudar no combate ao problema. A relatora, uma advogada armênia com longa experiência como consultora para vários órgãos da ONU, também elogiou o país. “É muito importante quando uma nação reconhece esse problema. Além disso, trabalhos feitos por ONGs, as próprias unidades móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho, e a lista suja, que discrimina empresas e produtos manchados pelo trabalho degradante, são experiências que levarei a outros países”, disse.
A lista suja do trabalho escravo é um mecanismo importante para mostrar à sociedade as pessoas e as empresas que usam mão de obra escrava em suas propriedades, disse a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Formas Contemporâneas de Escravidão, Gulnara Shahinian. “O governo não pode auxiliar, assim como os bancos não podem financiar quem usa trabalho escravo. Ninguém deveria comprar a produção que tem como base o trabalho escravo”, afirmou.
Em setembro, Gulnara vai apresentar seu relatório ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. A relatora disse que a lista suja e o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho são experiências que devem ser fortalecidas e levadas para outros países.
Perguntada sobre o fato de políticos já terem feito parte da lista, ela afirmou que isso não muda a situação e eles devem ser responsabilizados por isso. “Com respeito a serem políticos, eles cometeram um crime, o crime de escravidão e isso não muda nada”, disse. Segundo a organização não governamental (ONG) Repórter Brasil, políticos de expressão nacional já fizeram parte da lista suja do trabalho escravo, mas seus nomes foram retirados por terem eles resolvido as pendências administrativas com o Ministério do Trabalho, responsável pela fiscalização.
De acordo com o coordenador da ONG, Leonardo Sakamoto, hoje, há, na lista, 160 nomes de pessoas jurídicas e físicas. “Todas elas tiveram seus processos administrativos transitados em julgado pelo Ministério do Trabalho, com amplo direito de defesa.” Ele disse, ainda, que as empresas e as pessoas permanecem com o nome, por dois anos, na lista suja e, durante esse período, são monitoradas pelo Ministério do Trabalho. Caso seja verificado que não há mais trabalhadores em regime análogo ao de escravidão, nas propriedades, os nomes são retirados da lista.
Sakamoto informou que grande parte dos nomes que fazem parte da lista é de pessoas físicas. E mais da metade das propriedades onde há maior incidência de trabalho escravo é de criação de gado, seguida das de carvão para siderúrgicas
* Cristiano Morsolin, jornalista italiano, membro do Observatorio sobre Latinoamerica SELVAS, é correspondente internacional do EcoDebate.
(EcoDebate, 04/06/2010)