Depois do Zoneamento Agroecológico (ZAE) da Cana, publicado em setembro de 2009 para alavancar a produção do etanol, o governo federal divulgou, em abril deste ano, o ZAE do Dendê (ou da Palma).
Marco técnico que avalia as condições de expansão da cultura conforme fatores geoclimáticos, e que serve de base para políticas de crédito e assistência técnica, o zoneamento veio com um "bônus": o plantio de palma está restrito a áreas desmatadas até 2007, ano referência utilizado nos mapeamentos do Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) para o ZAE.
Uma das oleaginosas mais consumidas e polêmicas do mundo, o dendê tem sido duramente criticado por ONGs ambientalistas e sociais internacionais por promover desmatamentos e expulsão massiva de pequenos agricultores em países como Indonésia, Malásia, Papua Nova Guiné, Filipinas, Camarões, Uganda, Costa do Marfim, Camboja, Tailândia, Colômbia, Equador, Peru, Guatemala, México, Nicarágua e Costa Rica.
Na tentativa de se prevenir contra críticas neste sentido, o governo brasileiro lançou no Pará, no início de maio, o Programa de Produção Sustentável de Palma de Óleo, com diretrizes para o plantio e o financiamento do dendê em pequenas, médias e grandes propriedades. O programa, que também gerou um projeto de lei (PL) correspondente enviado ao Congresso Nacional, estabelece a "vedação de supressão, em todo o território nacional, de vegetação nativa para o plantio de palma" e a "vedação de licenciamento ambiental para indústrias que utilizem como insumo palma de óleo cultivada em áreas não indicadas pelo zoneamento agroecológico". O ZAE do Dendê estabelece 31,8 milhões de hectares na Amazônia e parte da costa brasileira - do Sul da Bahia ao Rio de Janeiro - como regiões aptas para a dendeicultura.
Ainda sem amparo legal para proibir desmatamentos - que só existirá com a aprovação do PL da palma -, os governos federal e do Pará, principal estado produtor atualmente, estão buscando entendimentos com o setor empresarial para minimizar problemas. Grandes empresas como Petrobrás, ADM, Oleoplan e Biocapital já confirmaram interessem em investir no dendê. Por um lado, multiplicam-se esforços para a inclusão da agricultura familiar na produção da palma (em projetos de integração/parceria entre agricultores e empresas que gerem renda e diminuam a pressão de compra de lotes da agricultura familiar por parte das empresas), e por outro há a tentativa de firmar acordos de adesão voluntária que regulamentem a atividade.
Por parte do governo paraense, o primeiro passo foi o estabelecimento de um Protocolo Socioambiental para a produção de Óleo de Palma no Estado, assinado por oito das 12 empresas atuantes no estado. São elas: Novacon Reflorestadora Indústria e Comércio de Madeiras Ltda, Consórcio Brasileiro de Produção de Óleo de Palma (Biovale), Agroindustrial Palmasa S/A, Dendê do Tauá - Dentauá, Dendê do Pará S/A - Denpasa, Galp Energia - Portugal, Marborges Agroindústria S/A e Petrobrás Biocombustível.
São diretrizes do Protocolo: o não estabelecimento de novos empreendimentos produtivos em áreas cujo desmatamento da cobertura florestal primária tenha sido realizado após o ano 2006; a implantação das áreas produtivas de forma a evitar a ocorrência de plantios contínuos (monoculturas) entre duas ou mais unidades produtivas e a uniformização da paisagem; a integração de agricultores familiares e produtores de pequeno, médio e grande porte; o não estabelecimento de plantios em áreas de populações tradicionais, indígenas e quilombolas, sem o seu livre, prévio e informado consentimento; a adoção de relações de trabalho pautadas pelo respeito, confiança, comprometimento e respeito às normas da legislação trabalhista.
De acordo com Márcia Tagore, da Secretaria de Programas Estratégicos do Estado do Pará, o protocolo não tem valor legal e é um "acordo de cavalheiros", mas poderá resultar em vantagens fiscais e de acesso a políticas públicas aos signatários. Critérios de adesão e monitoramento do compromisso deverão ser estabelecidos nos próximos meses, complementa.
Denúncias
Apesar dos esforços governamentais para evitar obstáculos à expansão da dendeicultura e do biodiesel de palma, problemas rondam a cultura no Pará, tanto nas esferas trabalhista e ambiental, quanto na fundiária.
Depoimentos colhidos por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) entre trabalhadores da comunidade quilombola de Jambuaçu, no município de Moju, por exemplo, intoxicações com agrotóxicos, contaminações de igarapés e problemas trabalhistas têm ocorrido regularmente na empresa Marborges, uma das signatárias do Protocolo Socioambiental.
"A Marborges é uma firma muito grande, mas os trabalhadores não têm alojamento. Eles andam 10, 15 quilômetro pra chegar no serviço. Tem gente que sai 3 horas da madrugada de bicicleta pra chegar no serviço. (...) Não tem ônibus lá pra pegar o povo. Não tem nada. É bicicleta que eles dão, mas é descontado no fim do mês. (...) Se o cara fura a mão nos treco de dendê, eles não dão atestados", afirmou o trabalhador V.A.
Os trabalhadores A.C. e A.S. pediram demissão da Marborges depois de dois anos de trabalho "porque o pagamento não compensa". "É somente um salário [mínimo] mais a produção, mas a gente estava tirando de R$ 150 a 200. A gente acordava às 2h, 3h para chegar no "bloco" as 5h30. A gente leva a marmita e a água. Eu jogava a química. (...) A química é água misturada com esse veneno. A gente usa mascara, luva, um vestimento amarelo, mas mesmo assim entra na gente. Com a química na mão eu ia comer. Você fica doente. Eu sentia muita dor de cabeça. A empresa tem um consultório e a agente paga quinze reais para se consultar", afirmou A.C.
Q.C. e R.S. denunciam casos de contaminação. "Na Marborges, têm tanque [que] eles chamam de tibórna, é uma água fedorenta. Dá problema para pisar. Não pode meter a mão, é uma química forte e eles trabalham sem nenhuma proteção. Lá tem varias pessoas contaminadas. Quando estão adubando, as pessoas não podem ficar lá. Alguns vomitam", diz Q.C. R.S. confirma: "Nós somos atingidos pelos resíduos da Marborges. Não podemos tomar água. Estamos onde expele a fossa deles. Ela joga tudo nas fontes e vaza. Há necessidade de combater porque os igarapés estão contaminados".
A Repórter Brasil contatou a Marborges por telefone e solicitou posicionamento da empresa sobre as denúncias. Depois do primeiro contato com um funcionário identificado como Daniel, as ligações não foram mais atendidas.
Segundo agricultores e o integrantes do governo do Pará, problemas fundiários envolvem a empresa Biovale - consórcio formado pela mineradora Vale e a empresa canadense Biopalma, também signatária do Protocolo. Já em 2008, quilombolas de Concórdia acusaram a então Biopalma de pressionar agricultores a vender suas terras, ameaçando com desapropriações por falta de titulação das áreas, como reportado pelo Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis (CMA) da Repórter Brasil em relatório sobre impactos do dendê.
No município de Bujaru, conta a agricultora R.C., a empresa começou a comprar terras a partir de 2009. Segundo ela, não há projetos de parceria com produtores familiares, "só compra de lotes mesmo". "Muitos dos lotes ainda tinham uma cobertura vegetal de capoeirão, que foi todo derrubado pra plantar dendê. Mas o que nos preocupa mesmo é o veneno que a empresa joga na plantação, porque aqui temos 25 famílias que vivem do mel. Esse veneno pode contaminar nosso produto e matar as abelhas", diz a agricultora.
Procurada pela Repórter Brasil, a Vale nega que a Biovale tenha comprado e desmatado áreas e sustenta que "o Consórcio dispõem de 130 mil hectares de terras e tem como premissa o reflorestamento de 60 mil hectares de áreas degradadas com plantio de palma (não ha desmatamento)". Márcia, da Secretaria de Assuntos Estratégicos do Pará, confirma que denúncias de compra de terras quilombolas chegaram à Casa Civil da Presidência e estão na pauta de negociação entre a empresa e o governo estadual.
Incertezas
Uma das apostas governamentais para minimizar problemas fundiários na dendeicultura é a integração de produtores - pequenos, médios e grandes - na cadeia produtiva do óleo de palma. Para o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a principal preocupação é fazer com que a agricultura familiar se beneficie economicamente com a expansão do dendê, prevendo inicialmente a inclusão de 7 mil agricultores em parcerias com empresas.
Para regulamentar esta participação, o Programa de Produção Sustentável de Palma de Óleo estipulou um limite máximo de 10 hectares de dendê para a agricultura familiar. Com isso, o governo espera que pequenos não abandonem outras culturas alimentares e acabem se descaracterizando.
O financiamento será via Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) de até R$ 65 mil, juros de 2% ao ano e prazo de até 20 anos para quitação. Médios e grandes terão crédito de até R$ 300 mil, com juros de 6,75% ao ano e até 18 anos para quitação.
Apesar disso, há discordâncias sobre a eficácia deste modelo de parceria. Projeto visitado pelo CMA da Repórter Brasil em 2008 na comunidade de Arauaí, em Moju, no qual a Agropalma (maior do setor no Brasil) integrou 150 famílias, os entrevistados afirmaram que não pratica outro tipo de agricultura por falta de tempo. Por esse motivo, explicou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) à época, parcerias nos assentamentos Calmaria I e II, também em Moju, optaram por áreas de 6 hectares.
Além da preocupação do abandono do cultivo de alimentos, entidades locais também temem endividamentos, por um lado, e incapacidade de acessar os créditos, por outro. Segundo lideranças de Bujaru e Concórdia, cerca de 85% dos agricultores da região estão inadimplentes com o Pronaf e, em tese, não poderiam acessar novos financiamentos. Estas dívidas, segundo a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri), atingem grande parte dos agricultores de ao menos 70 municípios do Pará.
O MDA informa que está as dívidas de pequenos produtores que querem aderir ao dendê estão sendo renegociadas. Ou seja, comprovada a capacidade de quitação de dívida junto ao banco, serão liberados R$ 65 mil do Pronaf e as dívidas pendentes ao planejamento futuro de acerto serão acrescentadas. Além de preocupados com o peso de uma dívida de grande porte, os agricultores ainda têm dúvidas sobre o processo.
De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Moju, está em curso a renegociação de pendências do Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO), mas não do Pronaf. "O FNO, são dividas de 2004 para trás. Houve uma renegociação do Ponaf em 2008, mas este ano não sabemos de nada", explica o diretor do sindicato, Edvando Nascimento.
Organizações sociais locais acreditam que as parcerias propostas pelo governo dão um grande poder às empresas. Conforme experiências, estipulam regras de manejo do dendê, investimentos e gastos com agroquímicos, formas de pagamento e remuneração, além da criação de uma grande dependência do agricultor em relação à empresa.
Para o economista Francisco de Assis Costa, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea) da UFPA, o interesse na manutenção de vínculos de dívidas nas experiências de agricultura integrada é comum. Dificilmente, continua, o esquema resulta em melhorias efetivas das condições de vida do agricultor. "Da forma como está estruturado, o modelo proposto é bastante unilateral [empresas controlam a relação]. Mas isso não significa que a organização dos trabalhadores não possa mudar este jogo".
(Por Verena Glass, Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis, Repórter Brasil, 04/06/2010)