Representantes de entidades socioambientais do Peru e do Itamaraty estiveram reunidos, na última quarta-feira, para discutir o tratado energético entre Brasil e Peru, a ser assinado no próximo mês, e que contempla a construção de cinco hidrelétricas na Amazônia peruana a um custo de R$ 25 bilhões.
Entre as irregularidades presentes no tratado, apontadas pelas entidades, está o fato de que não foi realizado até o momento um estudo sobre os problemas ambientais que seriam gerados pelas usinas. "Nenhum estudo foi feito [para a análise dos impactos socioambientais]. Existe apenas um [estudo], feito há 40 anos, por uma equipe japonesa e alemã. O governo está usando essa análise antiga para legitimar o projeto", explica Ruth Zenaida Buendia Mestoquiar, indígena ashaninka do Peru, que representa a Central Ashaninka do Rio Ene e esteve presente no encontro.
Outra questão apontada pelas ONGs é a falta de diálogo entre o governo peruano e os povos que serão afetados pela obra. "O projeto hidrelétrico tem sido planejado sem consulta das comunidades que serão afetadas. Não temos informação de nada", diz Ruth.
Durante a reunião, as organizações entregaram documentos pedindo uma análise mais efetiva sobre os impactos das hidrelétricas. "Esse acordo está sendo negociado com muito pouca informação aos cidadãos e, além disso, os direitos de avaliação dos projetos específicos [de algumas hidrelétricas] foram outorgados a empresas e consórcios privados, como é o caso do projeto de barragem do rio Inambari, em Madre de Diós, Cusco e Puno. A pouca informação disponível sugere que estão sendo negociadas condições muito desiguais entre Peru e Brasil, nas quais o Peru assumiria a maior parte dos custos, dos riscos, e as incertezas econômicas, sociais e ambientais do projeto, sem uma clara participação nos benefícios", diz um trecho de uma das cartas entregues ao governo brasileiro.
O empreendimento atualmente é articulado pelo governo brasileiro, que prevê um consórcio entre Eletrobras, Andrade Gutierrez, OAS, Odebrecht, Engevix e a empresa GTZ, do Peru. O texto do tratado internacional, que permitirá às empresas brasileiras construir e operar as usinas no país vizinho, ficou pronto na semana passada, e os ministérios de Relações Exteriores do Brasil e do Peru costuram as assinaturas do documento pelos presidentes dos dois países: Luiz Inácio Lula da Silva e Alan García.
O acordo binacional prevê, também, que a maior parte do financiamento das obras venha de recursos brasileiros, via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Eletrobras. A estatal brasileira de energia e as empreiteiras já possuem a concessão provisória das usinas, que não serão levadas a leilão. Isso porque as regras peruanas para o setor não exigem a obrigatoriedade de licitação. Quando o tratado for assinado e os estudos estiverem concluídos, as empresas poderão iniciar imediatamente as obras.
De acordo com Alfredo Novoa-Pena, da Associação Peruana de Energias Renováveis (Apeger / Pronaturaleza), que também esteve na reunião, o Peru não precisa dessa energia produzida pelas barragens. "Este é um projeto empurrado pelo Brasil e servirá só para o Brasil e seu mercado".
Segundo ele, a energia potencial peruana já é suficiente para o que seu país consome. "Não precisamos tocar na Amazônia, temos os Andes e os ventos da costa peruana que gerariam tanta energia quanto essas represas. Construir as hidrelétricas é um projeto impulsionado pelas grandes empreiteiras brasileiras, e a verdade é que nós peruanos sentimos que os brasileiros nos atropelam", conta.
Problemas
De acordo com os especialistas, o empreendimento causará sérios impactos socioambientais ao Peru. "Tal como está o tratado energético, construindo hidrelétricas na Amazônia, seriam promovidas conseqüências negativas diretas e indiretas aos ecossistemas amazônicos. O caso mais emblemático diz respeito à empresa brasileira Eletrobrás, que tem a concessão temporária da usina de Inambari, no Peru. E essa hidrelétrica afetaria todo o ecossistema do rio e provocaria o desalojamento involuntário das populações locais, que seriam afetadas pelo represamento, com o alagamento de suas terras", fala Cesar Gamboa, da organização Derechos Ambientales y Recursos Naturales.
"Nosso território será inundado e o direito dos povos indígenas, violado. Haverá desemprego, desalojamento. Não teremos para onde ir. Meu povo, o ashaninka, vai ser diretamente afetado", diz Ruth.
Ilegalidade
Além de causar impactos socioambientais e não ter sido feito a partir de diálogo com a população, o tratado desrespeita a própria constituição peruana. "No Peru, o tratado deveria passar pela aprovação do Congresso da República, mas as autoridades peruanas, que estão negociando o acordo com o Brasil, assinalam que é desnecessária a aprovação pelo Congresso, violando a Constituição do Peru. Com isso, possivelmente, assim que esse tratado entre em vigência, sem aprovação do Congresso, qualquer autoridade subnacional ou regional, poderia declarar a inconstitucionalidade do tratado gerando um clima de insegurança jurídica", afirma Gamboa.
Luta
Para impedir que se construam as barragens e, assim, a população e o meio ambiente sejam desrespeitados, as organizações buscam diálogo com representantes do Ministério das Minas e Energia e do Itamaraty. "Até agora eles não estão compreendendo a realidade dos possíveis impactos ambientais e sociais. Desde a primeira versão do projeto, de março, houve algumas mudanças, mas consideramos isso uma maquiagem, com a mudança de alguns artigos e a eliminação de outros. Porém, não foi uma mudança para assegurar que se evite qualquer possível impacto ao meio ambiente e às populações", explica Gamboa.
(Por Thais Iervolino e Fabíola Munhoz, Amazonia.org.br, 26/05/2010)