Inauguração de usina permitirá que País atue em todas as etapas de beneficiamento do mineral radioativo
O Brasil está pronto para dominar o ciclo nuclear completo em escala industrial. A inauguração da primeira fase da Usina de Hexafluoreto de Urânio (Usexa), prevista para este ano, permitirá que o País atue em todas as etapas do beneficiamento do mineral radioativo, desde a extração até a fabricação do combustível nuclear em grande proporção. Com isso, o Brasil fica independente de outros países no processo de enriquecimento, garantindo suprimento para as usinas nucleares e também para o futuro submarino nuclear. A informação foi divulgada pelo coordenador do Programa de Propulsão Nuclear da Marinha, capitão de mar e guerra André Luis Ferreira Marques.
No Centro Tecnológico da Marinha, no complexo militar de Aramar, em Iperó (SP), onde fica a Usexa, o ritmo das obras está acelerado. Na mesma área estão sendo construídos os prédios do Laboratório de Geração Nucleoelétrica (Labgen), responsável pela fabricação do reator do futuro submarino nuclear. “A Usexa começará a funcionar nos próximos meses em fase de comissionamento, quando se testam o sistema e os equipamentos para demonstrar que eles operam corretamente. As temperaturas, as pressões, as vazões, se as válvulas estão funcionando e se a instrumentação está dando informação confiável. Mas não vamos botar o urânio, ainda”, informou o capitão.
Segundo o militar, o yellow cake - urânio em forma de um pó amarelo - só deve começar a ser processado em 2011. A Usexa é formada por 40 quilômetros de tubos, tanques, fornos e milhares de válvulas, onde o mineral é misturado com outros produtos químicos para sair em estado gasoso, o hexafluoreto de urânio, ou UF6. Depois de passar por ultracentrífugas para ser enriquecido, esse gás vai separando o urânio 238, mais abundante, mas que não interessa ao processo, do urânio 235, mais instável e que produz energia mais facilmente.
O objetivo da Usexa é produzir combustível para o submarino nuclear brasileiro, que deve entrar em operação por volta de 2020. No complexo de Aramar serão produzidas 40 toneladas de UF6 por ano. Atualmente só seis países têm condições de fazer a conversão do yellow cake em gás: França, Rússia, Canadá, Estados Unidos, Brasil e Irã. O UF6 que o Brasil usa ainda é processado no Canadá.
Para alimentar as usinas Angra 1 e 2 e a terceira unidade, que está sendo construída, os volumes de urânio necessários chegam a 400 toneladas de UF6 por ano para cada uma. Esse combustível será produzido na unidade das Indústrias Nucleares do Brasil (INB), no município fluminense de Resende, onde funciona um complexo de ultracentrífugas operando em cascata. “Cada usina de Angra pede de 400 a 500 toneladas por ano. A produção em Aramar é dirigida para as necessidades do Ministério da Defesa. Existem conversações para nós sermos consultores técnicos da INB para eles fazerem lá em Resende uma unidade de 1.200 toneladas de UF6 por ano”, disse Marques.
A tecnologia nuclear é um dos assuntos mais sensíveis entre países, que dificilmente repassam conhecimentos ou alguns equipamentos. Na construção da Usexa, no complexo militar de Aramar, em Iperó (SP), os oficiais da Marinha responsáveis pelo projeto contam que sentiram pessoalmente o bloqueio tecnológico. Segundo Marques, um exemplo foi a tentativa do Brasil de comprar um forno específico necessário ao processo de conversão do urânio em pó, no gás hexafluoreto de urânio (UF6). “Um país só exporta o que interessa. Esse forno, que custa cerca de US$ 1 milhão, tentamos comprar lá fora. Perguntamos para a França e os Estados Unidos, que não responderam. A Alemanha respondeu, mas, quando dissemos que era para produzir trióxido de urânio, afirmaram que não podiam exportar”, conta. A solução foi desenvolver a tecnologia no Brasil. O capitão e mais três engenheiros da Marinha e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) desenvolveram o projeto e conseguiram um fabricante no País. O forno de calcinação para produzir trióxido de urânio começou a ser construído em 2000 e ficou pronto em 2001.
Escala industrial eleva patamar geopolítico do País, diz especialista
O domínio do ciclo completo do urânio em escala industrial, que, segundo a Marinha, deve ser atingido ainda neste ano, eleva o patamar geopolítico do Brasil, com reflexos inclusive na pretensão do País a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). A avaliação é do professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Alberto Montoya. “Para isso, é preciso que o País tenha capacidade militar para projetar o seu poder em escala internacional. De nada adianta ter um assento permanente e não possuir a capacidade de atuar no caso de uma responsabilidade internacional.”
De acordo com Montoya, o domínio do ciclo completo do urânio em escala industrial impõe ao Brasil não apenas maior poder, mas também novas responsabilidades. “Se um país de terceiro mundo diz que domina esse ciclo, isso acaba sendo percebido com desconfiança, porque é um fator geoestratégico para diminuir a dependência das grandes potências. Antes de impor respeito, impõe responsabilidade de que será para fins pacíficos e de que o seu uso será acompanhado de um programa muito específico de controle.”
Para o professor, a construção de um submarino nuclear é fator fundamental para garantir a soberania nos recursos marítimos. O submarino está relacionado à questão da Amazônia Azul, conceito que abrange a extensão territorial marítima do País, incluindo os campos petrolíferos do pré-sal.
“O Brasil tem defendido que tenhamos direito de reconhecimento de uma área de 900 mil quilômetros quadrados, equivalente às áreas somadas dos estados do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, do Paraná e de São Paulo. Para fazer o monitoramento dessa área, um submarino de propulsão nuclear será realmente importante, mas é preciso lembrar que apenas um submarino não vai dar conta de cobrir toda essa extensão.”
Reator de submarino será modelo para usinas
Os dez prédios em construção no complexo militar de Aramar, em Iperó (SP), vão abrigar o Laboratório de Geração Nucleoelétrica (Labgen), de onde sairá o primeiro reator nuclear 100% brasileiro – os de Angra 1 e 2 são, respectivamente, norte-americano e alemão. A principal aplicação do reator será equipar o primeiro submarino nuclear brasileiro, que deverá entrar em operação por volta de 2020. No prédio principal será montada uma réplica em escala real do submarino, para testar cada detalhe do reator, do motor e de todos os sistemas da embarcação, além de treinar a tripulação.
O reator será de uma nova família, bem mais eficiente energeticamente do que os anteriores, podendo usar combustível menos enriquecido e prolongando em muito a troca por uma nova carga. “Inicialmente vamos trabalhar em torno de 5% de enriquecimento. À medida que houver as evoluções, tende-se a ir a 20%. O gerenciamento do combustível hoje é mais inteligente. Consegue-se que o urânio fique mais tempo gerando energia”, explicou o coordenador do Programa de Propulsão Nuclear da Marinha, André Luís Ferreira Marques. “Nos primeiros navios, tirava-se o urânio ainda com muita energia para queimar, porque eles não conseguiam gerenciar isso direito”, lembrou Marques.
Ele destacou que, além de proporcionar um ganho na área da Defesa, a construção do reator vai beneficiar a sociedade como um todo, já que, extrapolando a escala, o mesmo tipo de projeto poderá mover uma usina nuclear. “As próximas usinas nucleares usarão tecnologia brasileira”, garantiu.
(JC-RS, 24/05/2010)