O combate ao trabalho escravo no Brasil deve ir além da fiscalização do Ministério do Trabalho e da “libertação” dos trabalhadores. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que expropria a terra em que for constatada a exploração de trabalho escravo, revertendo a área para o assentamento dos trabalhadores que estavam sendo explorados no local, é defendida pelos dirigentes da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
O secretário de Assalariados e Assalariadas Rurais da Contag, Antônio Lucas Filho, defende a votação da matéria, parada há seis anos na Câmara, ainda este ano. Segundo ele, o período pré-eleitoral seria o momento adequado para que os parlamentares que tentam a reeleição demonstrassem, por meio da votação da matéria, se estão comprometidos com a ideia de acabar com a escravidão.
Ele ironiza a posição da senadora Kátia Abreu (DEM-GO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que diz não existir trabalho escravo. Se os ruralistas não praticam a exploração do trabalho escravo, não há o que temer com a aprovação da lei, destaca Antônio Lucas. “Se a Kátia Abreu diz que não tem isso, porque tem medo?” indaga.
O dirigente sindical – ele mesmo vítima de trabalho escravo na adolescência – diz que existe trabalho escravo no Brasil e os números provam isso: no ano passado, 3.571 trabalhadores de 19 estados foram resgatados pelo Ministério do Trabalho de condições análogas à da escravidão.
A avaliação dele é que é difícil aprovar a matéria porque o Congresso é formado em sua maioria por parlamentares que são proprietários de terra e que têm medo porque sabem que podem perder suas terras caso seja aprovada a lei. “Não quer dizer que todo mundo que tem terra, escraviza”, destaca o líder sindical.
Ele acredita que vai ser preciso muita mobilização dos movimentos sindicais rurais e urbanos para aprovação da lei, lembrando que “o assunto interessa a todos, porque se a gente produz mais e melhor alimento, todo mundo será beneficiado”. E diz ainda que no meio urbano também tem muita escravidão, citando as atividades comerciais e pequenas fábricas clandestinas no estado de São Paulo, que vitimizam principalmente os nossos vizinhos de fronteiras (bolivianos, paraguaios etc).
Punições
A pobreza e a impunidade aliadas produzem os casos de trabalho escravo no Brasil, afirma Antônio Lucas. Para combater o problema, segundo ele, seria preciso “libertar” o trabalhador da pobreza e punir os produtores.
Ele descreve as ações que se desenvolvem no Brasil no combate ao trabalho escravo como insuficientes: O Ministério Público fiscaliza - contatado o caso de condição análoga à escravidão -, resgata o trabalhador e multa a empresa. O trabalhador recebe os direitos dele de imediato, com rescisão indireta e o empresário deve pagar multa ao Estado, mas eles recorrem e a gente acredita que eles não pagam todas as multas.
“Essa lógica desenvolvida pelo Brasil está errada, tem que ter ações complementares – prisão e pagamento de indenização por constrangimento”, explica o dirigente sindical.
Para ele, “o Estado como Justiça está falho e não está punindo como devia”. O Código Civil Brasileiro considera crime o trabalho escravo, mas apesar de vários casos confirmados, desde que começou a campanha de combate ao trabalho escravo nunca um empresário foi preso por isso. Porque nessa situação não tem prisão apesar de estar previsto no Código Penal? questiona Lucas.
Por isso, ele volta à defesa da aprovação da PEC. “Uma lei dessa aprovada impediria a reincidência”, lembrando que nem mesmo a prisão seria suficiente para evitar novos casos. “A prisão não representa tanto, porque eles têm advogado e sai em dois, três dias, embora exista uma repercussão comercial, que produziria efeitos negativos nos negócios deles”, afirma.
“Mas no caso de perder a propriedade, estaríamos dando um passo importante, e juntando tudo, colocaríamos a corda no pescoço contra os que querem manter a escravidão no Brasil”, resume Antônio Lucas.
Soluções
Para Antônio Lucas, outro problema que precisa de solução mais radical é o destino dos trabalhadores que são libertados do trabalho escravo. Eles recebem o dinheiro a quem têm direito, mas volta a situação original – de pobreza e ignorância.
“É por isso que eu sou contrário a rescisão indireta e multa, porque acabou tudo isso, o cara gastou o dinheiro e sem qualificação nem escolaridade, ele volta à mesma situação”, descreve, defendendo como situação ideal que o trabalhador fosse assentado na reforma agrária e recebesse conhecimento e qualificação para se defender. “O Estado tem que ter políticas públicas para isso”, destaca.
Outra solução apontada por Antônio Lucas, até que fosse alcançada a situação ideal com aprovação da PEC, seria a correção da empresa infratora e a manutenção do trabalhador – de forma regular - na empresa. Segundo ele, a fiscalização deveria dar um prazo para a empresa corrigir a situação e as multas iriam aumentando até que a situação fosse normalizada.
“É melhor corrigir a empresa e manter o emprego dele, porque a empresa não pára as atividades (após a “libertação” dos trabalhadores) e procura outros trabalhadores. E quem pode garantir que não sejam nas mesmas condições?” avalia Antônio Lucas.
Critérios
Apesar das muitas queixas, Antônio Lucas tem elogios para a ampliação dos critérios que definem o trabalho escravo e para a melhoria nos trabalhos de fiscalização.
De 1988 (com a Nova Constituição) para cá, os critérios foram ampliados. Somado ao longo período de trabalho - 10 a 12 horas por dia, falta de pagamento e o impecilho de ir e vir, outras condições foram agregadas, como a falta de alojamento e alimentação, água inadequada e ausência de assistência de saúde e segurança. “Essas todas somadas determinam a situação de escravidão”, explica o líder sindical.
Ele também avalia como ponto positivo o fato da fiscalização identificar vários casos novos. O aumento no número de casos é resultante da aceitação de denúncias anônimas pelo Ministério do Trabalho. “Porque quem escraviza não tem medida e nem medo para mandar matar quem faz a denúncia”, afirma.
Para o empresário que escraviza, Antônio Lucas não poupa críticas. Ele diz que antigamente o patrão que escravizava era aquele de perfil mais atrasado e ligado à pecuária, mas hoje tem empresários modernos que também usam escravidão.
Ele cita como exemplo o Grupo Cosan, empresa com capital estrangeiro, um dos maiores produtores de álcool e açúcar, com sede em São Paulo e usinas no Centro-Oeste - e que em 2009 foi denunciado e foi parar na lista suja. (http://www.mte.gov.br/trab_escravo/lista_suja.pdf)
Perfil do escravizado
Ao contrário do empresário que escraviza, o trabalhador escravizado tem um perfil definido – é o migrante analfabeto. “O migrante tem o perfil característico para a servidão”, diz Antônio Lucas, acrescentando que o migrante vem de longe, sem dinheiro, sem família, não conhece a região, por isso se torna alvo fácil.
Ele conta como ocorre a abordagem. O empregador oferece adiantamento em dinheiro logo na abordagem ao trabalhador, o que o coloca em dívida com o patrão, dívida que aumenta com a cobrança de alojamento, alimentação, instrumento de trabalho etc. “Quando o cara faz um adiantamento de salário, ele deu a senha negativa para o trabalhador ficar devendo e entrar na servidão.”
Para o trabalhador, que vem de uma região muito pobre, que não tem trabalho e deixa a família sem assistência, ele aceita o adiantamento e o trabalho considerando como “grande ganho”. “O trabalhador não tem consciência de sua situação”, explica o líder sindical. As empresas procuram gente mais jovem e analfabeta exatamente porque são os que tem menores condições de entender a sua situação.
(MST, 13/05/2010)