O rio São Francisco, conhecido como “rio da integração nacional”, “Velho Chico”, ou “Opará” (designação em língua Tupi), nasce na Serra da Canastra no Estado de Minas Gerais, a aproximadamente 1200 metros de altitude. Atravessa o Estado da Bahia, até alcançar a divisa ao norte com Pernambuco e desaguar no oceano Atlântico, dividindo também os estados de Sergipe e Alagoas. O baixo São Francisco compreende o trecho entre a cidade de Piranhas, em Alagoas, e a foz, entre os municípios de Brejo Grande/SE e Piaçabuçu/AL.
Devido aos longos trechos navegáveis, o rio São Francisco se constituiu, desde o período colonial, como uma via natural de ligação entre o litoral e o interior do país. Ao longo das margens do Baixo São Francisco organizaram-se centenas de pequenas comunidades, vilarejos, vilas e aldeias que tiram do rio seu sustento e têm nele sua maior referência simbólica e cultural. Pescadores artesanais, pequenos agricultores, índios, quilombolas, ribeirinhos, todos dependem das cheias do rio para garantir a fertilidade do solo e o sustento de suas comunidades. A pesca artesanal também é, até hoje, um importante recurso para a subsistência das comunidades.
A sobrevivência física e cultural destas comunidades está contudo ameaçada. Ao longo do século XX, grandes projetos de infra-estrutura, como barragens, usinas hidrelétricas e projetos de irrigação agrícola intensificaram o uso dos recursos naturais disponíveis concentrando água e outros recursos nas mãos de grandes proprietários rurais. A construção de diversas barragens e usinas ao longo da bacia diminuiu a vazão natural do rio e a alterou o regime de suas cheias periódicas. Estas traziam destruição e vida: ao mesmo tempo em que fertilizavam as terras ao longo das margens e garantiam o ciclo de reprodução de diversas espécies de peixes, destruíam com sua força as construções nas vilas ribeirinhas. Hoje o rio sofre com o assoreamento de seu leito e a retenção do curso natural pelas barragens.
Em diversos pontos do Baixo São Francisco e da sua foz é possível identificar trechos em que a vazão foi reduzida drasticamente. Pontes que antes cortavam o rio de uma margem à outra, hoje cruzam pequenos cursos d’água e grandes extensões de terras antes cobertas pelas águas. Em diversos municípios da foz, a salinização das águas do rio já é uma realidade. Pescadores e ribeirinhos que antes tiravam seu sustento do rio, hoje passam por dificuldades e têm que buscar novas alternativas de alimento e geração de renda.
Por tudo isso, movimentos sociais, comunidades tradicionais, organizações da sociedade civil, entidades eclesiásticas, parlamentares, ambientalistas, quilombolas, índios, sindicatos, pequenos agricultores, pescadores, entre outros estão se organizando e se mobilizando para pressionar o Governo Federal a investir em projetos de revitalização do rio São Francisco.
Da nascente à foz, é grande o número de entidades mobilizadas em torno desta questão. No trecho que divide os estados de Sergipe e Alagoas as entidades se organizaram em torno da Articulação Popular do Baixo São Francisco, que tem promovido diversas campanhas, atos públicos e mobilizações para garantir a sobrevivência do rio e daqueles que dependem dele para viver.
Entretanto, essas reivindicações têm recebido forte oposição do governo federal. Afinado com as demandas dos grandes investidores, latifundiários, produtores de frutas em áreas irrigadas, carcinicultores e piscicultores, o governo federal investe somas vultosas de recursos públicos no projeto de transposição do São Francisco. Incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a transposição é propagandeada como a solução para a dificuldade de acesso à água para centenas de comunidades no sertão nordestino. No entanto, ao contrário do que se divulga, os movimentos sociais denunciam que cerca de 70% da água retirada do rio atenderá a grandes empreendimentos, enquanto o consumo humano ficará com exígua parcela dos recursos hídricos.
Os movimentos sociais contrários à transposição afirmam que esta obra iria apenas transferir recursos escassos dos estados doadores para áreas já atendidas nos estados receptores. Sem que se solucionasse de fato o problema da escassez de água nas comunidades mais pobres ao longo do rio. Afirmam ainda que, com uma fração do valor total a ser investido na transposição, se poderia concluir uma centena de pequenas obras de infra-estrutura que teriam impactos benéficos bem mais significativos para a população dos nove estados da região Nordeste. Todos estes projetos já estariam previstos no Atlas Nordeste da Agência Nacional das Águas (ANA) e poderiam ser ampliados com propostas já discutidas no âmbito da Articulação do Semiárido (ASA).
As entidades envolvidas afirmam ainda que falta ao governo federal a vontade política necessária para debater o projeto da transposição com a sociedade e para construir propostas de revitalização de uma das mais importantes bacias hidrográficas do país. Enquanto se privilegia a destinação de recursos para beneficiar grandes empreendimentos, a população mais pobre e mais dependente do rio permanece sofrendo todos os impactos negativos desses empreendimentos e dos séculos de descaso e exploração insustentável da bacia. Sem condições dignas de subsistência, essa população se vê cada vez mais empobrecida e debilitada.
Contexto ampliado: Entre 2005 e 2008, o debate sobre a transposição do rio São Francisco se concentrou em torno da viabilidade socioambiental do projeto e de projetos alternativos, sobretudo, levando-se em conta os impactos negativos mais visíveis da atual gestão da bacia hidrográfica e dos possíveis novos impactos do projeto defendido pelo governo federal. Nesse contexto, a região do Baixo São Francisco, especialmente os municípios da foz, ganhou destaque por compreender os impactos com maior visibilidade.
Em 29 de outubro de 2005, uma equipe interdisciplinar da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) inicio expedição ao Baixo rio São Francisco a fim de estudar as populações que habitam suas margens e os impactos socioambientais da exploração do rio.
Fotos e imagens do assoreamento do rio e relatos da situação de desespero das comunidades ribeirinhas da região têm circulado intensamente em notícias de jornais, reportagens, relatório de entidades e campanhas. Em 10 de setembro de 2006, pescadores, barqueiros e lavradores do baixo São Francisco realizaram ato público às margens do rio para denunciar o estado de degradação ambiental da bacia. A mobilização em defesa do rio tem trazido várias entidades e movimentos sociais e ambientais para a Articulação Popular do Baixo São Francisco, que vem exercendo papel importante no debate e na manutenção de um ambiente de contestação da propaganda oficial do governo federal e dos estados aliados da transposição do rio (casos de Pernambuco e Ceará), como dos estados de Sergipe e Alagoas, cujos governantes, mesmo se opondo ao projeto do PAC, vêm reproduzindo projetos que seguem a mesma linha daquela financiada pelo governo federal.
A propósito da transposição, em 14 de outubro de 2006, a Câmara Consultiva do Baixo São Francisco realizou consulta pública em Propiá/SE, para discutir as propostas de ampliação da transposição das águas do São Francisco para outros fins, além do abastecimento humano e de criações de animais.
Em 2007, problemas na gestão das hidrelétricas da Chesf causou grande mortandade de peixes no Baixo São Francisco. Cerca de 300 toneladas de pescado são perdidas. Nos dias 12 a 16 de março, representantes de entidades de toda a bacia do rio São Francisco acamparam em Brasília exigindo reunião com o governo federal para discutir o projeto de transposição do rio. Uma semana de atos públicos e reuniões com órgãos dos diversos poderes foi realizada, mas representantes do movimento não foram recebidos pelo poder executivo federal. No dia 13 de março, o Diário Oficial da União publicou o edital das primeiras obras do projeto de transposição do rio São Francisco. Em 14 de março de 2007, foi criada em Brasília a Frente Parlamentar em Defesa do Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. Em 16 de março de 2007, Geddel Vieira Lima substituiu Pedro Brito, sucessor de Ciro Gomes, como titular do Ministério da Integração Nacional.
Em 22 de março de 2007, a Procuradoria da República do Distrito Federal recomendou ao Ibama a não liberação da Licença de Instalação das obras de transposição do rio São Francisco, antes da realização de audiências públicas para debater o projeto com a sociedade. Em 23 de março de 2007, o presidente do Ibama assinou a licença de instalação do projeto de transposição do rio São Francisco.
Um ponto muito debatido em relação ao projeto de transposição é o fato dele praticamente ignorar as necessidades da população do Baixo São Francisco. Os projetos localizados no médio curso do rio, especialmente nos estados do Ceará, Pernambuco e Bahia, estariam sendo priorizados. O temor de que a transposição amplie os impactos já provocados pelas barragens ao longo do rio tem mobilizado a população local. Diante desse cenário, diversos atores políticos têm se apropriado do sentimento de indignação e dúvida para se colocarem como lideranças da oposição ao projeto e na vanguarda de propostas de revitalização da bacia. Este seria o caso dos governadores de Sergipe e Alagoas, que têm divulgado projetos em conjunto, como o Protocolo de Intenções para a implementação do Plano Integrado de Desenvolvimento Sustentável da Região do Baixo São Francisco, assinado em dezembro de 2007.
Este plano foi propagandeado como um esforço conjunto para “reverter a situação de pobreza, exclusão social e baixa qualidade de vida das populações ribeirinhas, que apesar de viverem em um espaço de grande potência natural e diversas oportunidades de geração de renda, encontram-se ainda hoje em condições precárias de sobrevivência”.
Contudo, ao mesmo tempo em que os dois governadores se dizem preocupados com a população mais pobre, as políticas públicas que têm implementado não denotam maior preocupação com os pescadores artesanais ou outras populações tradicionais. Os projetos financiados pelos governos de Alagoas e Sergipe, com o apoio da Companhia de Desenvolvimento do Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), indicam outra lógica de exploração dos recursos hídricos, marcada pelo financiamento de grandes projetos de criação de pescado em cativeiro (como por exemplo, viveiros de tilápias) e produção para exportação. Como exemplo pode-se citar a criação de duas unidades de beneficiamento de pescado em Alagoas e Sergipe. Anunciadas com grande alarde, ambas foram projetadas para beneficiar grandes quantidades de pescados criados em viveiros implantados ao longo da bacia. Esta lógica configura a mesma visão do projeto de transposição do rio São Francisco, ou seja, a da exploração intensiva dos recursos naturais e mercantilização do meio ambiente. Longe de significarem reais frentes de oposição às propostas do governo federal, os governos estaduais de Alagoas e Sergipe financiam projetos complementares àqueles abraçados pelo PAC.
Na perspectiva dos movimentos sociais, é nesta distância entre o discurso e a prática que se localiza o cerne do conflito envolvendo a transposição do rio São Francisco. No âmbito do discurso, a coletividade e, principalmente, a parcela mais pobre da população local, é colocada como centro do projeto. A prosperidade social é portanto anunciada como objetivo central do projeto. Quando se analisam, entretanto, as reais implicações do projeto percebe-se a relutância do governo em considerar as alternativas propostas pelas entidades e movimentos sociais organizados.
Vemos assim esconderem-se, por trás do discurso oficial que destaca os “interesses da coletividade”, os interesses e acordos “público-privados” entre partidos políticos, governantes e grandes corporações empresariais, cujo objetivo principal é explorar as riquezas naturais em benefício próprio e dos seus acionistas. A postura do governo federal, frente aos protestos e atos das entidades contrárias ao projeto de transposição, não alcançou revelar metas e a transparência necessária para demonstrar os reais interesses e beneficiários do projeto.
Cientes destas contradições, as organizações populares do Baixo São Francisco têm se articulado em torno de propostas de revitalização da bacia que, uma vez implantadas, esvaziem o discurso oficial e inviabilizem a construção das estruturas necessárias à transposição. Vem sendo igualmente denunciada a situação dos pescadores sujeitos a toda a sorte de perseguição e arbitrariedade na região. Em 15 de março de 2008, a Articulação Popular do Baixo São Francisco, com o apoio de dezenas de entidades, encaminhou carta ao Presidente da República e a outras autoridades públicas denunciando arbitrariedades contra pescadores da comunidade de Resina, quilombolas de Brejo dos Negros e posseiros de Carapatinga, em Brejo Grande/SE. A ideia de esvaziamento e enfrentamento do discurso e demagogia oficiais emerge, também, na mobilização que a Articulação Popular do Baixo São Francisco, em parceria com organizações sindicais, realizou em Propriá no dia 1º de abril de 2008. O evento foi batizado como Dia das mentiras do governo Lula e da verdade dos Movimentos Sociais. O propósito seria construir um discurso alternativo ao discurso oficial e romper com o silêncio imposto pela mídia alinhada aos interesses corporativos e “desenvolvimentistas” que colocam em risco a sustentabilidade real da bacia. A “verdade dos movimentos sociais” se opõe à “verdade oficial” e se articula em torno de opções que valorizem o saber tradicional e formas alternativas de exploração da bacia.
O projeto de transposição do rio São Francisco não é o único projeto “desenvolvimentista” que tem mobilizado estas entidades. Coerentes com a defesa das formas tradicionais de ocupação do território e de contraposição a projetos capitalistas arbitrariamente impostos às populações locais, elas também têm se mobilizado contra a implantação de um complexo hoteleiro em Brejo Grande/SE pela construtora Norcon [ver Brejo Grande, Sergipe]. Este hotel expulsaria centenas de pescadores artesanais de seu território tradicional em nome de uma visão de desenvolvimento excludente e concentradora de renda. Por esse motivo, vem recebendo o repúdio das organizações populares do Baixo São Francisco e é alvo de campanhas e cartas visando impedir sua implantação.
Última atualização em: 14 de janeiro de 2010
Fontes: AGÊNCIA ALAGOAS. Pescado movimenta economia no Baixo São Francisco. Disponível em: http://www.agenciaalagoas.al.gov.br/especiais.kmf?cod=7564165/. Acesso em: 12 mar. 2009.
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AMBIENTE BRASIL. Protesto no Baixo São Francisco expõe degradação do rio. Disponível em: http://noticias.ambientebrasil.com.br/noticia/?id=26765. Acesso em: 12 mar. 2009.
ARTICULAÇÃO POPULAR DO BAIXO RIO SÃO FRANCISCO. Território tradicionalmente Pesqueiro Ameaçado na Foz do São Francisco. Disponível em: http://baixosaofrancisco.blogspot.com/2008_03_01_archive.html/. Acesso em: 12 mar. 2009.
___________. Governo federal ignora legalidade, ribeirinhos e segue com a transposição. Disponível em: http://baixosaofrancisco.blogspot.com/2007/03/governo-federal-ignora-legalidade.html/. Acesso em: 12 mar. 2009.
GAZETA DE ALAGOAS. Uma viagem às histórias do baixo São Francisco. Disponível em: http://gazetaweb.globo.com/v2/gazetadealagoas/texto_completo.php?cod=136902&ass=57&data=2008-11-01/. Acesso em: 12 mar. 2009.
PORTAL ECODEBATE. Rio São Francisco mais raso. Disponível em: http://www.ecodebate.com.br/2008/05/20/rio-sao-francisco-mais-raso/. Acesso em: 12 mar. 2009.
TRIBUNA DE ALAGOAS. Transposição – AL e SE fazem consulta pública. Disponível em:http://www.codevasf.gov.br/noticias/2004/20041013_03//. Acesso em: 12 mar. 2009.
TUDO NA HORA. Governadores de Alagoas e Sergipe assinam protocolo sobre Rio São Francisco. Disponível em: http://www.tudonahora.com.br/noticia.php?noticia=6622/. Acesso em: 12 mar. 2009.
(Por Ruben Siqueira, CPT/BA, EcoDebate, 12/05/2010)