Walter Colli, doutor em bioquímica e professor livre-docente pela USP, presidiu a instituição responsável pela liberação ou não de transgênicos no Brasil de 2006 a 2009. Ele foi um dos especialistas a entrar em contato conosco para refutar de forma veemente a opinião expressada por Michael Hansen, PhD em impactos da biotecnologia na agricultura e cientista sênior da maior organização de consumidores do mundo, em entrevista ao site de Galileu. Hansen criticou o que considerou uma postura irresponsável de liberação rápida de transgênicos pelos governos mundo, sem testes mais longos do impacto ao meio ambiente.
Para o professor Colli, os argumentos de Hansen são de "baixa ou nenhuma relevância científica" e não há impacto causado ao meio ambiente pelos organismos que são devidamente estudados e aprovados. Na entrevista abaixo, concedida por email, o especialista brasileiro contesta o cientista norte-americano, diz que há preconceito contra os transgênicos na discussão do tema, e defende as escolhas da entidade que presiu.
Comecemos com a mesma pergunta que fizemos a Michael Hansen: o senhor acha que estamos aderindo aos transgênicos de maneira responsável no Brasil? E no resto do mundo?
O Brasil foi um dos primeiros países a ter uma legislação capaz de regulamentar a pesquisa e a comercialização de produtos oriundos da engenharia genética, em 1995, por meio da Lei 8.974. Com a reformulação desta Lei, foi sancionada a Lei 11.105, em 2005, que é considerada por lideranças europeias como um modelo a ser seguido. A responsabilidade desse monitoramento é compartilhada entre as Comissões Internas de Biossegurança (CIBios) e a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Em cada local onde é feito um experimento com modificação genética de micro-organismos é obrigatório constituir uma CIBio que se reporta à CTNBio. As decisões são tomadas com base na ciência, o que pressupõe teste de hipóteses e tratamento estatístico dos dados. Portanto, posso afirmar que sim, o Brasil está aderindo aos transgênicos de maneira responsável, porque baseia suas decisões em dados científicos confiáveis. Esse sistema atende às normas rígidas de protocolos internacionais. O mesmo ocorre em outros países produtores de transgênicos, como EUA, Canadá, Argentina e Austrália, ainda que neles o sistema regulatório seja distinto e mais liberal que o brasileiro. Na Europa, as normas de biossegurança são tão rígidas como as brasileiras, porém lá a maioria dos agricultores é impedida de ter acesso ao uso da tecnologia de transgênicos em virtude, tão somente, de questões políticas e econômicas.
Hansen afirma que “na engenharia genética não existe nenhum controle sobre o lugar em que o gene é inserido dentro do genoma e isso pode ser incrivelmente destrutivo. Com a mutação natural, há uma razão para os genes estarem localizados em cromossomos específicos”. O senhor concorda com a afirmação?
As mutações, do ponto de vista biológico e evolutivo, não ocorrem com um fim específico, mas sim ao acaso. É nisso que se baseia a hipótese da origem das espécies por meio da seleção natural, proposta originalmente por Charles Darwin. Portanto, qualquer espécie viva hoje é produto do acaso, da luta pela sobrevivência e de outros fatores, como isolamento reprodutivo, por exemplo.
Editora Globo
O cientista Walter Colli
O processo de obtenção de um transgênico é composto por várias etapas e as técnicas de engenharia genética proporcionam a inserção do transgene [gene alterado] no genoma ao acaso, como tudo na natureza. A etapa seguinte da obtenção de um transgênico é a seleção dos indivíduos com a característica desejada. Se, entre as plantas transformadas, foram obtidos indivíduos aberrantes, evidentemente, estes serão eliminados, não serão testados, não serão avaliados e, muito menos, comercializados. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento possui o chamado Serviço Nacional de Proteção de Cultivares, regulado pela Lei 9.426, de 27 de abril de 1997. Quando uma empresa quer registrar uma nova cultura, seja ela transgênica ou não, deve apresentar uma série de dados. Deve comprovar que o novo cultivar possui estabilidade genética, o que pressupõe a repetição das mesmas características ao longo de sucessivas gerações. Para desmistificar essa afirmação do Dr. Hansen veja-se o caso do arroz que comemos todos os dias. Setenta por cento do arroz comercializado resiste ao herbicida imidazolinona, o que permite eliminar o arroz vermelho, considerado uma praga, das plantações. Esse arroz, resistente ao herbicida, foi obtido por tratamento de sementes com o mutagênico etil-metano sulfonato que induziu modificações cromossômicas aleatórias e que nunca foram mapeadas. Das plantinhas que sobraram selecionou-se a que resistia à imidazolinona e provou-se por vários cruzamentos que as mutações induzidas eram estáveis. Esse arroz não é chamado transgênico porque não foi obtido pela introdução de um gene, mas é produto de profundas mutações no genoma. Ainda assim, comemos e exportamos esse arroz, e estamos felizes.
Antes de serem comercializadas no Brasil, por quais tipos de testes passam as plantas geneticamente modificadas?
As CIBios das instituições, públicas ou privadas, que desenvolvem as plantas transgênicas devem apresentar um relatório com estudos de biossegurança ambiental e alimentar, além de informações sobre o desenvolvimento do transgênico e das comprovações sobre seu funcionamento. São realizados testes de verificação de inserção do transgene no genoma, para seleção de clones transformados. Depois, testa-se se o transgênico, em contenção [com dispositivos para impedir a dispersão dos transgênicos], expressa satisfatoriamente o fenótipo [característica externa] desejado. Se os resultados são satisfatórios, são realizados os testes de campo, quando se verifica a eficácia da planta, suscetibilidade a doenças e pragas e os aspectos relacionados à biossegurança, como fluxo gênico, influência na população de insetos não-alvo, de micro-organismos etc. Nesta etapa também são realizadas avaliações sobre a segurança alimentar, para saber se serão tóxicos ou alérgicos.
As companhias que fabricam sementes transgênicas têm influência sob a comunidade acadêmica, como movimentos antitransgênicos dizem? Alguns dos cientistas da CTNBio já não trabalharam em parceria com elas?
Creio que é um argumento que visa desqualificar aqueles que pensam diferente dos movimentos antitransgênicos. Poderíamos dizer, em resposta, que muitos desses movimentos são apoiados técnica e financeiramente por organizações de países que possuem posições antitransgênicas. Deveríamos considerar que essas pessoas estão a serviço dessas organizações? Na atividade científica são comuns parcerias público-privadas, incentivadas inclusive pelo governo brasileiro. Alguns membros da CTNBio podem ter tido projetos de pesquisa em parceria com diversas empresas, inclusive a Embrapa. É importante lembrar que as empresas procuram a academia pelo conhecimento. O fato de existirem possíveis parcerias entre academia e empresas não desabona a atuação do cientista e, no caso específico da CTNBio, por determinação legal, o membro da Comissão deve assinar um termo de conduta e manifestar-se todas as vezes em que se julgar impedido, se julgar que há conflito de interesses. Quando isso acontece o cientista abstém-se de votar ou emitir parecer. Dizer que a aprovação de um produto transgênico no Brasil ocorre porque os responsáveis cedem a lobby é querer desqualificar os cientistas brasileiros renomados, idôneos e com profundo conhecimento científico em suas áreas de atuação.
Hansen cita alguns casos de transgênicos que geraram alergias em populações. Como o senhor explica tais ocorrências? Houve pesquisa suficiente nesses casos?
Para cada estudo que aponte um problema desse tipo, existem centenas que indicam que não existe diferença alguma entre transgênicos e similares não transgênicos. Também é importante dizer que muitos estudos que apontaram problemas de biossegurança alimentar de transgênicos jamais conseguiram ser reproduzidos. Mas é compreensível e desejável que exista questionamento, pois fazer perguntas é um processo inerente à ciência. O importante é que os trabalhos sejam conduzidos de modo correto. Nesse sentido, é consenso de que os estudos mais relevantes, reprodutíveis e publicados em periódicos altamente qualificados indicam ausência de ocorrência de problemas. Quem quiser ver esses estudos deve ler o parecer final de cada uma das liberações comerciais aprovadas pela CTNBio (www.ctnbio.gov.br) e verificar que em cada parecer há de 50 a 200 referências de trabalhos científicos que desmentem o que disse o senhor Hansen. Os produtos do tipo Bt contêm em seu genoma um gene denominado cry retirado do genoma do Bacillus thuringiensis. Esse gene expressa uma proteína que mata a lagarta – e só a lagarta, pois ela tem um receptor para essa proteína em seu intestino. Como isso foi descoberto? Pelo fato de que agricultores orgânicos pulverizam esporos de Bacillus thuringiensis sobre seus cultivos. Portanto, se qualquer componente desta bactéria causasse alergia, todos os produtores e trabalhadores em lavouras orgânicas e consumidores seriam afetados. É preciso ainda esclarecer que nesse item houve grande confusão na palestra do sr. Hansen porque se confundiu alergia (normalmente produzida por proteínas) com intoxicação por agroquímicos. Não obstante, os herbicidas que acompanham os transgênicos são o glifosato e o glufosinato, ambos com uso aprovado no Brasil pelo Mapa, pelo Ibama e pela Anvisa. Do site da Anvisa se depreende que esses herbicidas pertencem à categoria verde, a menos tóxica de todas. As outras são azul, amarela e vermelha em ordem crescente. Vale à pena entrar nesse site.
Em 2007, o Brasil liberou o milho transgênico MON 810, da Monsanto. Essa variedade foi proibida em diversos países - como Alemanha, França, Áustria, Grécia, Luxemburgo, Hungria e Itália - e a decisão foi também questionada pela Anvisa e pelo Ibama. No que a CTNBio se baseou para considerar que esses países, o Ibama e a Anvisa estavam sendo exagerados em suas preocupações?
Os países que você citou não são produtores e exportadores de alimentos e vários deles possuem empresas produtoras e exportadoras de agroquímicos. Assim, é fácil compreender o interesse deles em proibir transgênicos. Por outro lado, Estados Unidos, Argentina, Canadá e China, grandes produtores e exportadores de alimentos, comercializam o milho MON 810. O Brasil foi o último a aprovar a liberação comercial deste produto, em 2007, isto é, 10 anos após essa tecnologia ter sido usada pelo mundo. Outro fato interessante é que a União Europeia permite o plantio comercial e o uso deste produto desde 1998. A CTNBio, para aprovar o produto, baseou-se em dados científicos publicados em periódicos especializados, com revisão por pares e no seu uso seguro pelos países mencionados. Foi a decisão do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), rejeitando os recursos do Ibama e da Anvisa, que demonstrou o exagero dessas agências.
Qual é o papel que os transgênicos devem desempenhar na agricultura?
O que poucas pessoas sabem é que os transgênicos diminuem grandemente o uso de agroquímicos, utilizados extensivamente na produção de alimentos. Com a diminuição da aplicação de produtos químicos, a atividade agrícola passa a agredir menos o solo, os cursos d’água e os trabalhadores rurais. O solo sofre menos erosão e há diminuição sensível da emissão de gases do efeito estufa pelo corte drástico do uso de tratores. Também o consumidor é beneficiado pela diminuição de resíduos de agroquímicos nos alimentos.
O que determina a CTNBio sobre a liberação experimental de transgênicos?
Para a liberação experimental, a CTNBio analisa caso a caso os pedidos e as medidas de biossegurança que serão conduzidas durante o experimento, com a finalidade de se evitar o escape do transgênico. É importante acrescentar que uma pesquisa somente é liberada para avaliação a campo quando diversos critérios de biossegurança forem respondidos. Essas medidas de biossegurança variam conforme a espécie. Por exemplo, para milho, a CTNBio exige isolamento espacial de 400 metros ou isolamento temporal de 40 dias mais 20 linhas cultivadas com milho convencional e 10 metros de distância de outros plantios de milho. Para soja, a Comissão exige isolamento espacial de 10 metros, com cinco destes 10 metros cultivados com variedade comercial de soja.
Quais cuidados têm sido tomados com relação aos impactos dos OGM ao meio ambiente?
A sua pergunta já é uma afirmação que os OGM (Organismos Geneticamente Modificados) impactam o meio ambiente. Razões teóricas e experimentais mostram que os genes escolhidos não são prejudiciais ao meio ambiente. É justamente por isso que a análise dos transgênicos é feita caso a caso.
Sem o uso de transgênicos, o mundo sofreria problemas de falta de alimento?
Muitos dos problemas da falta de alimentos no mundo estão relacionados a políticas públicas de distribuição e acesso e não à produção. Portanto, os transgênicos não resolverão todos os problemas relacionados à fome. Mas considero impensável não contar com essa tecnologia para manter o nível de produção de alimentos em um patamar seguro. Existe uma crescente demanda em razão do aumento populacional e do poder aquisitivo da população de países emergentes. Por outro lado, também existe uma crescente urbanização e empobrecimento dos solos, além da limitação de uso da água na agricultura, que impede aumentos maiores de produtividade. A necessidade de não expandir as áreas agrícolas também é altamente relevante. Nenhuma outra tecnologia usada na agricultura terá um impacto tão importante na solução desses problemas como o uso de transgênicos. No verão de 2002, em meio a uma epidemia de fome, retratada pelos rostos das crianças que os fotógrafos mostraram ao mundo, Zâmbia, Moçambique, Zimbábue e Malawi rejeitaram doações de milho dos EUA pressionadas pelos grupos antitransgênicos europeus. É importante ainda lembrar que os transgênicos podem contribuir com a qualidade nutricional dos alimentos, como é o caso do arroz dourado que, por falta de políticas públicas, não está acessível às populações pobres da África, que continuam sofrendo com a falta de alimentos e com a cegueira noturna.
Para garantir segurança contra a contaminação de safras, a CTNBio determina distância entre as plantações de transgênicos e as plantações comuns. Mas, em 2009, depois de alguns casos de contaminação de lavouras no Paraná, a Secretaria de Agricultura do Estado afirmou que existem “evidências das dificuldades em evitar a contaminação, mesmo cumprindo as distâncias estabelecidas”.
As regras determinadas pela CTNBio foram devidamente avaliadas e baseadas em estudos científicos rigorosos. Até os países europeus que permitem o uso de transgênicos adotam regras similares a estas. Em alguns países, essas distâncias sequer são adotadas, pois não se trata de uma questão de biossegurança, e sim de identidade dos grãos colhidos para fins comerciais. O problema da coexistência está relacionado a uma questão de mercado, ou seja, é um problema comercial e não de segurança. A CTNBio, para expedir essa norma, baseou-se em dados científicos atuais e foi também assessorada por cientistas externos à Comissão. O Ministério da Agricultura é o órgão responsável pela fiscalização de plantios, sejam eles experimentais ou comerciais. O Mapa ainda não concluiu a análise relativa à suposta “contaminação”. Lembrar que a afirmação do Paraná veio em uma nota técnica e não em trabalho científico publicado, em que métodos, estatística e resultados são verificados por outros cientistas. Após a análise do Mapa, a CTNBio poderá se pronunciar a respeito.
O senhor é a favor da realização de audiências públicas com a participação da sociedade civil sobre a liberação do comércio de transgênicos no Brasil?
Sim. Mas é necessário considerar que o assunto é altamente técnico e que, portanto, opiniões baseadas em preconceitos têm que ser relativizadas. Se as pessoas vão à Audiência Pública, não para se informar, mas com posições preconcebidas, a Audiência se transforma em happening. Durante minha gestão como presidente da CTNBio realizamos três audiências públicas, com a participação da sociedade civil, da academia, dos interessados e do Ministério Público. Na audiência pública sobre algodão geneticamente modificado, fomos surpreendidos com a chegada de 12 ônibus de pequenos agricultores da região de Catuti, no cerrado do norte de Minas Gerais, que vieram pedir à CTNBio aprovação de outras variedades de algodão transgênico. É que com a crise que se seguiu à invasão do bicudo eles haviam perdido as suas plantações e empobrecido. Recuperaram-se com a aprovação do algodão Boll Gard I. Tenho as fotos daquela magnífica manifestação da sociedade civil organizada.
Tem algo mais que considere importante acrescentar?
Foi perguntado ao Sr. Hansen se os transgênicos deveriam ser proibidos. E ele respondeu que não, que isso deve depender das decisões de cada país e que, se os transgênicos forem testados e aprovados, poderiam ser permitidos. Então, baseado no posicionamento do Sr. Hansen, posso dizer que o Brasil toma suas decisões com fundamento em estudos e testes, na experiência de outros países que começaram a comercializar transgênicos dez anos antes de nós e no conhecimento de nossos cientistas, que os temos em boa quantidade. Os transgênicos não são um problema, mas sim uma solução para os problemas reais da agricultura. Boa parte da incompreensão deve-se à falta de informação e desconhecimento da agricultura e suas práticas. Talvez por isso a adoção dessa tecnologia pelos agricultores, que a conhecem bem, seja tão formidável. Já os consumidores, mesmo que não percebam os benefícios diretos dos transgênicos, são os que se beneficiarão mais deles no futuro.
(Por Mariana Lucena, Revista Galileu, 12/05/2010)