Os povos indígenas da América reclamam o cumprimento de uma série de direitos que vão além da reivindicação de seu passado e do pedido de reconhecimento de culpas por parte dos países que historicamente os ultrajaram. Assim se depreende do que foi dito por especialistas reunidos em Madri para apresentar o livro “Declaração sobre os direitos dos povos indígenas. Por um mundo intercultural e sustentável”. Um dos palestrantes, o juiz Baltasar Garzón, disse à IPS que o deslocamento forçado de seus locais de origem de comunidades indígenas e a depredação de seus territórios podem ser qualificados como crimes de lesa humanidade e, portanto, sujeitos à legislação internacional.
Nessa linha também se pronunciou James Anaya, relator especial da Organização das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos e as liberdades fundamentais dos indígenas, que afirmou à IPS que os países, além de terem assinado a Declaração, devem cumpri-la e aplicá-la. Para isso os governos devem tomar “medidas concretas e efetivas que garantam que os povos indígenas gozem de seus direitos plenamente”, acrescentou.
Em seu pronunciamento no debate do dia 6 à noite, que no final foi fervorosamente aplaudido por cerca de mil presentes, Garzón apresentou como prova um informe do Banco Mundial no qual se admite que, em alguns países, a situação dos indígenas não mudou e que “têm direito à reparação das injustiças históricas que sofreram. Porque a história não pode ser apagada, mas reparada”, acrescentou. Para isso, considera indispensável que se enfrente a situação criada por latifundiários e empresas de petróleo que, “como os narcotraficantes”, expulsam as comunidades indígenas de suas terras.
O juiz espanhol, conhecido internacionalmente desde que ordenou, em 1998, a captura em Londres do hoje falecido ex-ditador chileno general Augusto Pinochet, se diz “amigo dos povos indígenas” e, por isso, faz visitas periódicas a eles. Contou que viu avanços, mas que a “situação real está longe de ser idônea ou aceitável juridicamente”. Como exemplo negativo citou o ocorrido com os mapuches do Chile, acusados de terrorismo na ditadura de Pinochet (1973-1990) e também já na democracia, e apontou como positivo o que ocorre na Bolívia e no Equador.
Um exemplo dessa situação negativa foi relatado em março à IPS, no Chile, por Antonio Cadin, porta-voz da comunidade Juan Paillalef, localizada 730 quilômetros ao sul da capital chilena, área onde há reclamações pela usurpação de suas terras. Cadin cumpre pena de cinco anos e um dia, com benefício de reclusão apenas à noite, acusado de atentado contra a autoridade e por desordens. Ele afirmou na época que “como comunidade, estamos praticamente todos presos, e quem não está sofre alguma medida cautelar com detenção”.
Além disso, Garzón recordou a expulsão de comunidades completas em áreas do Brasil e da Colômbia, bem como maus-tratos e marginalização que enfrentam nos Estados Unidos e no México e, ainda, o “genocídio” cometido no século XX na Guatemala. Anaya, por sua vez, afirmou que a Declaração objeto de debate “não deveria existir, ou não teria motivo para existir”, já que foi emitida porque foram cometidas violações maciças dos direitos humanos e seus efeitos continuam sendo vistos.
J. Daniel Oliva Martinez, professor de Direito Internacional Público na Universidade Carlos III, em Madri, afirmou que a reclamação dos povos indígenas é o direito à autonomia e ao reconhecimento da propriedade de suas terras. Mas, entende o especialista, atualmente em nome do passado e da civilização estão sendo cometidos fatos terríveis contra os direitos humanos dessas comunidades. É o caso da Colômbia, onde 33 povos estão em risco de extinção, alguns por causa do longuíssimo enfrentamento armado entre Estado, guerrilha esquerdista e paramilitares de ultradireita.
Frente aos problemas criados pelo desenvolvimento impulsionado pelos países do Norte, os indígenas – disse – propõem um modelo alternativo, “de autodesenvolvimento com base na ajuda mútua, na reciprocidade, na ideia do bom viver, com condições de vida dignas e em contextos nos quais o meio ambiente seja preservado”. Vários dos participantes do painel defenderam o direito indígena à autodeterminação, sobre o qual Anaya fez importante esclarecimento, aceito pelos demais.
O relator da ONU disse que, além do significado subjetivo de que os povos indígenas consigam esse direito, “existe uma tendência generalizada de interpretar a livre autodeterminação como chave para a estatização”. Ou seja, o direito a autodeterminar sua separação do Estado onde residem. Essa autodeterminação reconduz aos valores fundamentais da liberdade e da igualdade, “relevantes para todos os setores da humanidade, incluídos os povos indígenas, em relação às condições políticas, econômicas e sociais nas quais vivem”, acrescentou.
Esclareceu, no entanto, que “só em casos excepcionais essa autodeterminação, entendida como chave de direitos humanos, pode requerer o desmembramento dos Estados”. Uma posição que os povos originários mantêm em todos os fóruns internacionais, nos quais “descartam constantemente qualquer intenção de obter Estados independentes ao exigirem seu direito à livre determinação”, concluiu Anaya.
(Por Tito Drago, IPS / Envolverde, 10/5/2010)