A Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) impetrada pelo Partido Democratas (DEM) contra o Decreto 4.887/2003 será julgada no Supremo Tribunal Federal (STF) nos próximos dias, segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas. Entre as comunidades o clima é de tensão. A informação é que a derrubada do decreto foi proposta para defender interesses de fazendeiros e grandes proprietários de terras.
A tentativa de derrubar o decreto e mudar a legislação recebeu apoio, inclusive, dos deputados do Espírito Santo, que chegaram a recorrer, junto ao Movimento Paz no Campo (conhecido por violentar os direitos das comunidades) à bancada federal, na tentativa de invalidar a titulação de terras quilombolas no norte do Estado.
Sem o decreto, os ocupantes (empresas, fazendeiros e latifundiários) de terras tradicionalmente quilombolas ganhariam o direito de continuar produzindo na terra dos remanescentes de escravos, situados nos municípios de Conceição da Barra e São Mateus, como ocorre há anos.
A anulação do decreto ou a relocação das comunidades – que só é permitida em caso de desastre natural – contraria a política do governo federal e tenta ainda condenar essas comunidades à situação permanente de miserabilidade. Mas, caso haja a suspensão do decreto, as titulações baseadas nele podem ser questionadas e o processo de regularização poderá ficar sem regras.
Na prática, a tentativa de anular o direito dos quilombolas retrata o cenário vivenciado no norte do Estado há mais de 50 anos, onde áreas indígenas e quilombolas foram usurpadas, principalmente pela ex-Aracruz Celulose (atual Fibria), mas, no caso dos negros, também por fazendeiros, posseiros e grandes produtores.
Ainda na década de 70, pelo menos 12 mil famílias de quilombolas habitavam o norte do Estado. Atualmente, resistem entre os eucaliptais, canaviais e pastos cerca de 1,2 mil famílias. Sem suas terras e vítimas dos impactos ambiental, social e econômico causados pela monocultura do eucalipto, e ainda de violência praticada pela ex-Aracruz, os negros encontraram na produção de carvão o único meio de subsistência.
Direito sagrado
Os quilombolas têm direito à propriedade da terra por determinação do artigo 68 da Constituição Federal do Brasil de 1988. O direito à auto-identificação das comunidades quilombolas é garantido pelo Decreto 4.887/03. E também pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), fixada pelo Decreto Nº. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007.
Pesquisas realizadas pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) apontam que os negros foram forçados a abandonar suas terras: em Sapê do Norte existiam centenas de comunidades na década de 1970, e hoje restam 38. Em todo o Espírito Santo existem cerca de 100 comunidades quilombolas.
Além das comunidades quilombolas do Estado, há ainda três mil comunidades remanescentes de quilombos em todo o País que correm o risco de ter seus processos de titulação prejudicados por uma recomendação do Tribunal de Contas da União (TCU). O Acórdão 2835/2009 do órgão, feito em 2009, quer suspender o Decreto 4.887/2003 que regulamenta os direitos quilombolas. Com a decisão, o TCU extrapola sua competência, como defende o Ministério de Promoção da Igualdade Racial.
Com o Acórdão, os ministros do Tribunal de Contas se antecipam ao Supremo Tribunal Federal (STF), que ainda não julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). Para os quilombolas, a queda do decreto significaria um retrocesso para as comunidades negras, além de representar o desejo de uma classe que não permite que os direitos quilombolas sejam respeitados. Impasse que tem sido um dos entraves para a titulação de terras quilombolas.
(Por Flavia Bernardes, Século Diário, 08/05/2010)