“A Natureza para ser comandada precisa ser obedecida”. Francis Bacon, em 1620
“Se tiveres que tratar com água, consulta primeiro a experiência e depois a razão”. Leonardo Da Vinci, em torno de 1.500[1]
Este é um resgate da história, um tanto esquecida, de um desastre ambiental de proporções imensuráveis chamado Valo Grande, no município de Iguape, litoral sul do Estado de São Paulo. Os casos de Valo Grande, no rio Ribeira de Iguape, e da Volta Grande, no rio Xingu, guardadas as devidas proporções, têm uma triste semelhança: a desastrosa ignorância ambiental das decisões autoritárias fomentadas por elites políticas e econômicas para alterar o curso de um rio. O primeiro aconteceu no século XIX por ordem do imperador D. Pedro I. O segundo poderá ocorrer agora, no século XXI, por ordem de um presidente inspirado no imperador.
O rio Ribeira de Iguape tem sua foz no município de Iguape no litoral sul de São Paulo, no Vale do Ribeira. Nas primeiras décadas do século XIX ele servia para escoar a produção de arroz até o porto fluvial do Ribeira. Para ganhar tempo, os produtos seguiam por terra do Porto do Ribeira até o Porto de Iguape no litoral do Mar Pequeno. Esse caminho diminuía o percurso entre o porto fluvial e o porto marítimo. Ler a matéria toda.
A distância entre os portos, percorrendo o trecho do rio Ribeira de Iguape até sua foz e de lá pela costa até o porto marítimo, era de 30 quilômetros. Para poupar essa viagem os representantes da elite econômica e política de Iguape tiveram a idéia de escavar um canal de três quilômetros ligando os dois portos.
D. Pedro I autorizou a construção do canal de 4 metros de largura que desviou parte da água do rio Ribeira de Iguape. Em 1827 foram iniciadas as obras do Valo Grande com mão de obra escrava.
A produção seria transportada através de canoas, ao invés de carroças, com uma grande economia de tempo. Mas o que ninguém imaginava é que esse canal provocaria uma resposta violenta da natureza, insatisfeita com a ousadia humana de alterar as vazões do trecho final do rio Ribeira de Iguape. Em menos de 50 anos os originais 4 m de largura do canal passaram para 200 m e depois para 300 m.
O rio não suportou o desrespeito. Nas cheias, as águas desviadas para o trecho artificial, sem os meandros para domar sua velocidade, solaparam suas margens carreando todo o sedimento para o porto de Iguape, que acabou assoreado. Esse é conhecido como um dos mais trágicos desastres ambientais decorrentes do desvio de um rio. Erosão e assoreamento transformaram definitivamente o ecossistema da região e a biodiversidade do complexo lagunar Iguape – Cananéia.
Inúmeras espécies de peixes e mariscos que eram a base da atividade econômica para sobrevivência de caiçaras e ribeirinhos do município desapareceram. A foz natural do rio Ribeira de Iguape, à míngua até hoje, é “também vítima do assoreamento e da alteração de sua dinâmica flúvio-marinha. Enfim, uma radical transformação geológica de toda a região.”[2]
Atualmente cerca de 70% da vazão do rio são escoados pelo canal diretamente no mar – criou-se uma foz artificial. A natureza cobrou caro o preço da interferência humana. O Mar Pequeno que separa a Ilha Comprida do continente, onde afloram algumas dunas de sedimentos trazidos pelo canal, está completamente assoreado.
Ainda no século XIX Iguape perdeu a prosperidade e seu porto marítimo, que competia em importância com o do Rio de Janeiro . Hoje as grandes enchentes na região levam enormes prejuízos à agricultura. O assoreamento do Mar Pequeno onde deságua o canal artificial do Valo Grande é um obstáculo ao escoamento normal da vazão das cheias do rio Ribeira de Iguape.
A construção do Valo Grande em 1827, na extremidade norte da ilha próxima à Iguape, acelerou os processos de erosão e sedimentação na área, inclusive na Ilha Comprida.
Se o desvio de um rio que começou com um canal de 4 m de largura com 3 km de comprimento causou tamanho desastre, pode-se imaginar as conseqüências do desvio de um rio da importância do Xingu através de canais que variam de 160 m a 750 m de largura por 20 km de comprimento?
Essa interferência no fluxo do rio se deu numa escala centenas de vezes menor que a pretendida no projeto de Belo Monte, mas levou a alterações ambientais inimagináveis na temperatura e nas propriedades físico-químicas das águas da região. Valo Grande é uma grande ferida que não vai cicatrizar nunca.
Especialistas têm alertado para a fragilidade do equilíbrio natural e biológico no trecho da Volta Grande do Xingu. A vazão chamada “ecológica” que a prepotência humana pretende liberar magnanimamente para o trecho de 100 quilômetros da Volta Grande, não satisfará as necessidades da natureza. Alterar o curso do rio Xingu vai desencadear um processo de destruição da vida nos pedrais que se refletirá até a foz do Amazonas.
A ironia é que estamos no século XXI enfrentando decisões autoritárias apesar de todo o conhecimento acumulado com amargas experiências em desastres ambientais. Na verdade estamos ainda sob o mesmo obscurantismo das elites econômicas e políticas do século XIX.
O projeto da hidrelétrica Belo Monte prevê a escavação de 20 quilômetros de canais artificiais para desviar 80% das águas do rio Xingu, no trecho da Volta Grande. O objetivo, neste caso, é criar um reservatório artificial alimentado pelas águas desviadas para acionar as turbinas da casa de força principal.
São 100 quilômetros do rio Xingu que perderão sua vazão normal à semelhança do que aconteceu com os 30 quilômetros do rio Ribeira de Iguape, no século XIX. Não são precisos estudos ou exercícios de futurologia para ter idéia das conseqüências disso para o meio ambiente. Basta ir até Iguape e constatar.
(Por Telma Monteiro, 06/05/2010)