Na avaliação do economista Dion Monteiro, "o que está por trás da questão da Usina de Belo Monte é a concepção de vida de modelos de desenvolvimento e relações econômicas, sociais, políticas, culturais e ambientais que existem onde o econômico se destaca". Em entrevista concedida, por telefone, à IHU On-Line, Monteiro analisa a situação da região após o leilão da Usina, realizado no dia 20 de abril. Sobre a polêmica arrematação, Monteiro diz que a cassação da suspensão do leilão é muito "interessante" de ser avaliada, no sentido dos interesses políticos escondidos neste processo. "Sabemos que a decisão do presidente do TRF foi política, não levando em consideração os aspectos técnicos que tanto o MPF quanto o juiz federal de Altamira levantaram no decorrer do processo. Isso aponta, infelizmente, subordinação e conivência entre o executivo, no caso do governo federal, e o servidor público do judiciário, que cassou as liminares", afirma.
A respeito dos próximos capítulos da história de Belo Monte, Monteiro destaca que o processo de denúncias e as manifestações irão continuar. "Vamos continuar com nossas ações políticas. Acreditamos que o governo incorre um erro gravíssimo sobre modelos de desenvolvimento. O governo ainda insiste em um modelo atrasado, considerado no mundo todo como responsável pelos graves problemas ambientais e sociais, não consegue ver além do componente econômico, e, desta forma, só acentua os desastres climáticos, ambientais e o ataque ao planeta", lamenta.
Dion Márcio C. Monteiro é economista e membro do comitê metropolitano do Movimento Xingu Vivo para Sempre.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O senhor afirma que a Usina Hidrelétrica de Belo Monte será construída para atender com energia barata as empresas do eixo centro-sul do país. Que empresas são essas? O que elas produzem?
Dion Monteiro - São indústrias, algumas trabalham na produção de bens duráveis, e outras, na produção de bens de consumo. Na região norte, são as empresas eletrointensivas, aquelas que precisam de muita energia para mover sua atividade produtiva, em especial as mineradoras que trabalham com exploração de recursos minerais, como a Vale, a Alcoa. Há algumas que extraem, mas se beneficiam desses recursos, como metalúrgicas e siderúrgicas. Em suma, são empresas que desenvolvem a atividade produtiva pautada na extração e industrialização dos recursos. Temos visto que o desenvolvimento de suas atividades tem trazido consequências muito graves em relação à questão ambiental. É o aprofundamento de um modelo de desenvolvimento pautado no fator econômico. É um modelo atrasado, antigo e que não dá conta das necessidades do mundo na atualidade.
IHU On-Line - Os 11 mil megawatts de potência dessa usina só serão gerados durante quatro meses no ano. O que significa deixar "parada" essa potência nos outros meses?
Dion Monteiro - Os estudos mostram que, devido ao fluxo do Rio Xingu, só durante três ou quatro meses, e em alguns momentos até dois, os 11 mil megawatts serão gerados. Em outros quatro meses, será gerada uma quantidade entre 30 e 40%, e nos outros meses, muito menos do que isso, no máximo mil megawatts. Isso implica diretamente na viabilidade econômica da obra, porque vão se gastar 20 bilhões de reais para construí-la, segundo o governo; 30 bilhões de reais, segundo as empresas; e 40 bilhões, segundo outros analistas. Isso para uma obra que só irá gerar grande quantidade de energia durante quatro meses.
Como a usina irá trabalhar com menos de 50% da sua capacidade máxima de viabilização, isso quer dizer que, economicamente, a obra não se sustenta. Isso sem levar em consideração as questões ambientais que estão sendo tratadas por especialistas independentes, pelo Ministério Público Federal, por organizações de movimentos sociais e pelas comunidades indígenas, ribeirinhas, quilombolas e agrícolas da região. Essa situação ambiental e social é séria, mas, se olharmos somente pelo aspecto econômico, é uma situação que inviabiliza a obra.
IHU On-Line - No dia 20-4-2010, foi anunciado que o leilão de Belo Monte estava suspenso. Mas, no mesmo dia, a liminar que suspendia o leilão foi cassada. Em sua opinião, porque esse processo se deu dessa forma?
Dion Monteiro - O que aconteceu foi algo muito interessante de se avaliar no sentido dos interesses políticos que estão por trás de todo esse processo que aconteceu no dia 20. O Ministério Público Federal ficou mais ou menos um mês preparando as duas últimas ações que deu entrada. Uma que falava dos impactos sobre as terras indígenas, e outra que falava sobre os problemas nos estudos de impacto ambiental. O juiz federal de Altamira ficou uma semana analisando os argumentos do MPF, antes de conceder essas duas liminares. Menos de três horas após receber o recurso da advocacia geral da união, o presidente do Tribunal Regional Federal cassou as liminares.
Um processo que o MPF demorou um mês preparando, que o juiz federal de Altamira ficou uma semana analisando, foi cassado em menos de três horas. A afirmação do presidente é que a localização do leilão traria graves prejuízos à economia pública, entre outros argumentos. Isso nos mostra que a decisão do presidente do TRF foi política, não levando em consideração os aspectos técnicos que tanto o MPF quanto o juiz federal de Altamira levantaram no decorrer do processo. Isso aponta, infelizmente, subordinação e conivência entre o executivo, no caso do governo federal, e o servidor público do judiciário, que cassou as liminares.
IHU On-Line - E como o senhor analisa o leilão de Belo Monte?
Dion Monteiro - O leilão, como ocorreu, mostra exatamente todo o processo que vem acontecendo há 35 anos, se considerarmos o período da ditadura militar. O desfecho do leilão é emblemático e bem adequado para essa situação toda, porque mostra as contradições que esse processo apresenta, traz uma insegurança jurídica e técnica muito grande e uma postura autoritária do governo federal no trato com a região amazônica, dando sequência a essa relação histórica com a região.
Na Amazônia, em relação aos grandes projetos, principalmente, não mudou quase nada do período da ditadura militar, quando Belo Monte começou a ser discutido, até hoje. A relação continua autoritária e não considera os povos e a experiência amazônica. Isso foi expresso de forma muito clara. Quem fala isso não são só os movimentos sociais, também são pessoas de outros grupos políticos, partidos, o próprio MPF e representantes do Congresso Nacional. O leilão, para mim, é simbólico, no sentido de mostrar os grandes problemas que existem no processo de Belo Monte, a relação autoritária que o poder central tem com a região e também a insegurança desse projeto.
IHU On-Line - Qual sua opinião sobre a não participação da Odebrecht e a Camargo Corrêa do leilão?
Dion Monteiro - Eles se retiraram, alegando uma grande dúvida pautada nas questões econômico-financeiras, principalmente na questão do preço do megawatt-hora. São empresas com larga experiência neste processo, com interesses apenas econômicos e que estudam o projeto de Belo Monte há muito tempo. Basta lembrarmos que quando o Consórcio Nacional de Engenheiros e Construtores (CNEC) começou a estudar o projeto, em 1975, ele era ligado à Camargo Corrêa. Para uma empresa como essa, que está presente desde o início do processo, retirar-se no momento final, é porque para as empresas existem problemas sérios.
Outras empresas já alegaram, como representantes da Suez, que, além da insegurança econômico-financeira, há a questão da insegurança jurídica, por conta das ações do MPF e no processo como um todo. Logicamente que as empresas vão participar ou não do processo conforme a avaliação conjuntural, econômica e política que elas fazem. Para nós, este é mais um elemento que mostra os equívocos que estão sendo cometidos no projeto de Belo Monte, desde seu início até o momento.
IHU On-Line - Em função de Belo Monte, Altamira espera por dez mil empregos. Que impacto isso causará na cidade depois de finalizada as obras?
Dion Monteiro - Primeiro, é interessante ver a situação de Altamira e da região do entorno. A cidade de Altamira tem aproximadamente 100 mil habitantes. O relatório de impacto ambiental, feito pela empresa contratada pelo governo, fala que cerca de 100 mil pessoas migrarão para a região. Isso significa que a população da cidade irá dobrar. Como cidade-pólo, a maioria irá se concentrar na cidade entorno de Altamira. Mesmo no pico da obra, serão gerados 40 mil empregos, entre empregos diretos e indiretos, durante dois anos, segundo o governo.
Isso quer dizer que 160 mil não terão emprego na região. Na região da Amazônia, a taxa de desemprego é muito elevada, atinge, muitas vezes, 30 ou 40% da população economicamente ativa. Se a população de Altamira tem 100 mil habitantes, muito mais de 10 mil pessoas em idade produtiva estão desempregadas. Isso quer dizer que esta estimativa de 11 mil empregos para a região, mesmo que seja verdadeira, não atenderia a taxa de desemprego que já existe.
Junte a isso a migração das 100 mil pessoas. Esse argumento, que é utilizado pelos interessados em construir a obra, é facilmente desconstruído quando avaliamos aprofundadamente os elementos. Outro dado interessante é que, no final da obra, só ficarão cerca de 700 empregos diretos e serão empregos de qualificação mais elevada. Segundo o relatório de impacto ambiental, mais de 32 mil pessoas ficarão na região depois que a obra for concluída. Esta relação entre quantidade de emprego gerados, migração e taxa de desemprego existente da região amazônica, mostra que os empregos prometidos de forma alguma atenderão a população da região conforme sua necessidade. Pelo contrário, aumentará os desempregos com o aumento de pessoas e não servirão para desenvolver socialmente e para garantir uma vida melhor ao pessoal da região.
IHU On-Line - Que análise o senhor faz da atuação do grupo Bertin, vencedor do leilão?
Dion Monteiro - Temos informações que são muito complicadas em relação à questão do grupo Bertin. Sabemos que o grupo responde a processos ambientais, trabalhistas e outros em quatro estados diferentes. Se não me engano, responde a processos no Pará, no Tocantins, em São Paulo e no Mato Grosso do Sul. Por si só essa já é uma informação muito preocupante. Fora a própria capacidade do grupo de dar conta de um projeto de tamanha envergadura.
Primeiro a competência técnica, financeira e econômica do grupo já levanta uma questão preocupante, mas, principalmente, a grande quantidade de processos que esse grupo responde no Brasil, em dois Estados do norte, um do centro-oeste e outro do sudeste. A questão ambiental é algo mais complicado ainda. A empresa responde processos por questões ambientais e trabalhistas e estará em uma obra que vai afetar, evidentemente, o meio ambiente, que vai impactá-lo de forma intensa. Isso além da quantidade de trabalhadores que serão deslocados para as atividades. Para nós, essa empresa é muito preocupante, especialmente por seu conjunto.
IHU On-Line - Em sua opinião, quais serão os próximos capítulos de Belo Monte?
Dion Monteiro - Depois da realização do leilão, o governo vai tentar validar as empresas, vai emitir posteriormente a licença de instalação e de operação. Porém, para nós, seja dos movimentos sociais, dos pesquisadores que têm desenvolvido trabalhos importantíssimos, quanto para o MPF, que já se manifestou em relação a essa questão, esses processos mais burocráticos e administrativos não definem a resistência, a forma de atuação e os passos que vamos dar. Independente da realização do leilão, da emissão das licenças, nossa luta política de denúncia, de divulgação dos problemas no Brasil e fora dele e as nossas ações judiciais levando para os tribunais internacionais, seja para a ONU, para a OEA, OIT e para outros tribunais, vão continuar.
Na minha avaliação, os próprios passos serão uma continuação do processo que já vem sendo desenvolvido, ou seja, de denúncias, manifestações, atos políticos e públicos, realizados pelos movimentos sociais, comunidades, povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas. No campo jurídico, acompanhando e apoiando as ações do MPF, que já recorreu da suspensão das liminares, outros processos estarão sendo julgados pela justiça de Altamira, implementadas tanto pelo MPF quanto por entidades a resistência indígena vai se acentuar.
A resistência indígena também vai se acentuar. Os indígenas já deixaram claro que não aceitarão a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Os movimentos sociais estarão junto com as comunidades tradicionais, com os povos originários, com o MPF, os pesquisadores da academia que compreenderem que é importante desenvolver um outro modelo para a região amazônica. Acreditamos que o governo incorre um erro gravíssimo de compreensão sobre modelos de desenvolvimento. O governo ainda insiste em um modelo atrasado, considerado no mundo todo como responsável pelos graves problemas ambientais e sociais, não consegue ver além do componente econômico, e desta forma só acentua os desastres climáticos, ambientais e o ataque ao planeta.
Vamos continuar com nossas ações políticas, também no campo jurídico, porque defendemos outros modelos de desenvolvimento, que levam em consideração as questões ambientais, sociais, culturais, econômicas, mas que não estejam acima dos outros componentes, e sim trabalhando com eles. Vamos nos contrapor a Belo Monte, às hidrelétricas do Tapajós, que serão as outras hidrelétricas que o governo quer implementar. Acreditamos que esse modelo é ultrapassado e não serve para o planeta.
Acho que minha fala explicita nossa posição em relação a Belo Monte, que não é puramente ideológica e dogmatizada. É uma posição a partir de uma ampla reflexão, feita há dezenas de anos, não começa agora. São elementos que vêm das reflexões coletivas dos moradores da região, dos movimentos sociais, da academia, e que nos mostra que, se continuarmos seguindo neste rumo, chegaremos à insustentabilidade do planeta. O que está por trás de toda essa questão, na qual Belo Monte se mostra como o projeto que explicita essa situação, é a concepção de vida de modelos de desenvolvimento e relações econômicas, sociais, políticas, culturais e ambientais que existem onde o econômico se destaca.
Acreditamos que o modelo que tenha a possibilidade de garantir a vida na Terra, em conjunto com o meio ambiente, precisa estar pautado em outra concepção de relações sociais, de produção e ambientais, onde o meio ambiente esteja no mesmo patamar das necessidades humanas. Isso é possível ser feito. Algumas experiências a partir das comunidades dos povos tradicionais e de pesquisas acadêmicas mostram que podemos superar esse modelo de desenvolvimento vigente e que podemos garantir a vida no planeta, para esta e todas as outras gerações.
(IHU - Unisinos, 05/05/2010)