Em 1982 o milionário americano Daniel Ludwig decidiu não pagar a prestação que vencia do empréstimo japonês, de 200 milhões de dólares para a construção – no Japão – da fábrica de celulose e da usina de energia do Jari, de propriedade daquele que era então considerado um dos homens mais ricos do mundo. Seria uma questão do mundo de negócios se o tesouro nacional não fosse o avalista da operação. Uma vez constituída a inadimplência, o governo brasileiro teria que quitar a dívida. E executar o devedor para ter de volta o seu dinheiro. O problema é que Ludwig, pressentindo os prejuízos que teria e que não previu, não queria mais continuar à frente do Projeto Jari, que era seu desde 1967. O desfecho da história seria uma heresia para o governo do general João Figueiredo: estatizar um empreendimento que era a vitrine da colaboração estatal com o capital estrangeiro.
O ainda todo-poderoso ministro Delfim Neto entrou em ação. Ele ligou para um grupo de empresários, sobretudo empreiteiros e banqueiros, que deviam favores ou benefícios do governo, e “convidou-os” a formar um consórcio para nacionalizar o super-projeto de Ludwig, até então cantado em prosa e verso. O comando ficaria com o mineiro Augusto Antunes, amigo de Ludwig e que atuava na região desde a década de 50, associado à segunda maior multinacional do aço, a Bethlehem Steel, na exploração da jazida de manganês de Serra do Navio, no Amapá. Esperto, Antunes ficou só para si com a coroa do espólio de Ludwig, a Cadam, empresa de caulim, a única que já era rentável.
Não podendo dizer não a Delfim, os empresários entraram na sociedade. Mas cada um ficaria com apenas 3% do capital e só integralizaria de imediato 10% dessa parcela. Antunes ficaria com 40% e o controle acionário, mas não colocaria dinheiro vivo. A integralização seria feita com a Cadam. Como a principal atividade do projeto, a fábrica de celulose, era deficitária e assim continuaria por longo tempo, quem colocaria capital para valer?
Ora, o BNDES. Em seguida, quando o rolo cresceu, também o Banco do Brasil. A soma das aplicações foi além de 500 milhões de dólares, sem retorno, porque a contrapartida dos bancos estatais foi receber ações preferenciais, sem poder sobre a administração. Teriam apenas direito a preferência na distribuição de lucro, que nunca houve. O dinheiro público não voltou até hoje e o empreendimento continuou privado, agora com o grupo Orsa, de São Paulo.
Dos 23 empresários contatados por Delfim, apenas um foi ver com seus próprios olhos o negócio oferecido: sozinho, em vôo de carreira, o banqueiro Olavo Setúbal, dono do Itaú. Na ida e na volta ao Jari, conversei com ele no aeroporto de Belém. Setúbal disse, com tranqüilidade, que não entraria no consórcio. Não havia rentabilidade. Logo, não era de interesse para um empresário. E não entrou. Para não cometer a heresia de estatizar o Jari, o governo enfiou num buraco sem fundo meio bilhão de dólares para que os supostos donos continuassem a tocar o empreendimento.
O leilão da hidrelétrica de Belo Monte tem muitos pontos de identidade com a “nacionalização” do célebre Projeto Jari, quase 30 anos atrás. Também sem similitudes com a venda da Companhia Vale do Rio Doce, em 1997, um dos escândalos – talvez só superado pela privatização do sistema estatal de telecomunicações – do governo Fernando Henrique Cardoso. A CVRD talvez também pudesse ser privatizada, para o bem da nação. Mas nunca por aquele preço irrisório. E jamais na íntegra, incluindo seu sistema logístico, que só se constituiu porque a Vale era estatal. Em poder de uma empresa privada, não seria aceito nem nos Estados Unidos ou na Inglaterra dos nossos dias.
O projeto de Belo Monte se tornou um monstro, um Frankenstein, depois de tantas mudanças, correções, ajustes e mistificações feitos nos seus 30 anos de história. Começou como uma cópia do modelo de hidrelétricas no Brasil, com ênfase em Tucuruí, apenas com ligeiras correções e adaptações. Consistia numa sucessão de seis barragens, uma delas, a de maior reservatório, para estocar água do Xingu e garantir sua energia média viável da maior das casas de forças, num rio com grande variação de vazão (diferença de mais de 230 vezes entre o inverno e o verão).
O facão da índia Tuíra, passado no rosto do tecnocrata com o principal papel nesse enredo, o engenheiro José Antônio Muniz Lopes, encerrou essa etapa, em 1989, durante o Encontro dos Povos Indígenas em Altamira. O Banco Mundial decidiu não mais financiar grandes barragens na Amazônia. Fechou-se a grande porta de financiamento internacional, base de sustentação do “barragismo” no Brasil.
Belo Monte parecia condenada ao esquecimento. Mas em 2002 ela foi reapresentada com nova moldura: sem as demais barragens rio acima e com seu reservatório reduzido a um terço do tamanho original (de 1.200 para 400 km2), metade dele coincidindo com a área natural de inundação do Xingu à altura de Altamira. Era a primeira grande hidrelétrica a fio d’água do Brasil, destinada a ser a terceira maior do planeta sem qualquer dos efeitos dramáticos de Tucuruí, que tem 3.100 km2.
Mas sem o estoque de água da barragem de Babaquara, as 18 enormes turbinas da casa de força ficariam paradas, por absoluta falta de água, durante três meses e funcionariam a baixa potência por igual período. A energia firme ficaria abaixo do nível recomendado, de 50%, podendo bater em pouco mais de 30%. E havia ainda outro problema: o custo da transmissão da energia crescera tanto que se aproximou do custo da geração, relação inédita nesse tipo de orçamento.
A preocupação com a imagem ambiental do projeto, abalada desde 1989, afetou a viabilidade técnica e econômica do projeto, que se tornou tremendamente complexo e inseguro. A construção dos diques para conduzir a água por dois igarapés até a casa de força, num desnível de 90 metros e uma distância de 50 quilômetros, demanda um volume enorme de concreto e requer uma precisão tal para evitar vazamentos temerários diante das condições da área na Volta Grande do Xingu. Uma barragem secundária foi concebida para manter a vazão pelo leito natural do rio, impedindo-o de secar, mas depois foram aduzidas turbinas a bulbo, que produzem – embora em muito menor quantidade do que as Francis da casa de força – com água corrente.
A condução do projeto também se tornou descontínua. Depois de ficar sob o controle total da Eletronorte, foi dividido entre a Odebrecht e a Andrade Gutierrez, e a Chesf substituiu a estatal amazônica, sem condições financeiras, enquanto as duas empreiteiras privadas acabaram se desinteressando por apresentar o lance vencedor no leilão. O consórcio que arrematou a concessão será incapaz de executar a obra, convicção a que se pode chegar apenas examinando as empresas que o compuseram.
A expectativa de que o outro competidor seria o vencedor, por combinar construtoras experientes e habilitadas com grupos de consumidores intensivos de energia (como a Vale e a CBA), se frustrou por algum incidente de bastidores ainda não reconstituído. A própria marginalia do leilão deve ter crescido tanto que, se chegar a ser revelada, desnudará provavelmente um escândalo de acertos prévios e cartas marcadas, o maior do governo Lula.
A sofreguidão do presidente arrematou a sucessão de erros e irregularidades com a decisão de que, se tudo der errado, como está acontecendo, o governo assumirá sozinho o projeto, estatizando-o de vez. As tinturas de privatização são tênues demais para que se acredite nelas. O BNDES se dispõe a financiar 80% dos 19 bilhões de reais orçados para a obra, a Sudam já comprometeu isenção de 75% do imposto de renda e outros benefícios já se incorporaram à cesta de favores, com o objetivo de reduzir ao mínimo o risco do empreendedor. Com tudo isso, a rentabilidade do negócio dependerá ainda da disposição do governo de ir além porque a obra poderá ultrapassar R$ 30 bilhões, nela ainda não está prevista a transmissão, e ficam pendentes detalhes técnicos que não podem ser minimizados diante da grandiosidade do projeto.
Se ainda estivesse vivo e fosse ao Xingu ver o que estavam lhe oferecendo, o banqueiro Olavo Setúbal certamente voltaria de lá com a mesma convicção que trouxe do Jari. O negócio só pode ir em frente com muito dinheiro público. E quando isso acontece, sem uma diretriz firme, a história começa a feder.
Lúcio Flávio Pinto, Jornalista paraense, publica o Jornal Pessoal (JP)
(ADITAL, EcoDebate, 04/05/2010)