Um dos dados que o 25º relatório dos conflitos no campo, divulgado recentemente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), destaca é que o nível de violência nessa área voltou a aumentar a partir de 2003. De acordo com o professor Carlos Walter Porto Gonçalves, que participou da pesquisa realizada para a construção deste relatório e concedeu esta entrevista à IHU On-Line, por telefone, a natureza dos conflitos no campo viveu dois grandes períodos onde a intensidade da violência no campo aumentou. “O primeiro vai de 1985 a 1990, e o segundo período vai de 2003 até hoje. Mas esse segundo período se constituiu numa surpresa para nós”, relatou.
Gonçalves explica: “O aumento dos conflitos se dá em parte porque os movimentos sociais viram, na eleição de Lula, uma perspectiva de que houvesse a Reforma Agrária e, assim, aumentaram sua mobilização, principalmente nos primeiros anos do período. Por outro lado, os setores que são contra a Reforma Agrária e a democratização do acesso à terra, temendo que o Lula pudesse efetivar esse projeto, partiram para um processo de violência”.
Carlos Walter Porto Gonçalves é doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e, atualmente, é professor da Universidade Federal Fluminense. É autor de Territorialidad y lucha por el territorio en América Latina – Geografía de los movimientos sociales en América Latina (Caracas: IVIC – Instituto Venezolano de Investigaciones Científicas, 2009) e La Globalización de la naturaleza e la naturaleza de la globalización (La Habana: Casa de as Americas, 2008), entre outras obras.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Essa é a 25ª edição do relatório. Como você analisa os dados sobre os conflitos, violências sofridas e ações de trabalhadores rurais durante esse período? Tivemos mais avanços ou retrocessos?
Carlos Walter Porto Gonçalves – É preciso, em primeiro lugar, elogiar a Comissão Pastoral da Terra pela sistematização desses dados do campo. A CPT tem, inclusive, lançado mão de assessoria de vários técnicos e cientistas para aprimorar tecnicamente essa sistematização e, por isso, seus dados são cada vez mais consistentes. Hoje, sabemos que 92% do total desses registros são recolhidos dos próprios jornais nos quais vemos, com freqüência, artigos de intelectuais tentando desqualificar a fonte.
Nós, na análise que fizemos desses 25 anos, identificamos cinco períodos distintos quanto à natureza dos conflitos. Reparamos que há dois períodos onde são maiores os conflitos e a violência. O primeiro vai de 1985 a 1990, e o segundo período vai de 2003 até hoje. Mas esse segundo período se constituiu numa surpresa para nós. No primeiro, nós vivíamos o período pós-ditadura, a sociedade estava muito mobilizada, e entramos num processo de refundação do Estado brasileiro através da Constituinte de 1988. Foi um período muito intenso no campo particularmente, as oligarquias temiam que a Constituinte avançasse em relação à democratização do acesso à terra e, por isso, ampliou a violência naquele período. Essa violência foi, sobretudo, do poder privado, uma vez que houve muitos assassinatos e expulsões da terra.
Assim, nossa surpresa foi grande quando vimos que o nível de conflitividade voltou a aumentar no período a partir de 2003. É um período que coincide, embora nossa análise não se faça por governo, com o governo Lula. O interessante é que embora essa violência tenha aumentado, não se pode atribuir a Lula da Silva enquanto presidente da república, mas sim ao modo como os diferentes atores envolvidos com o campo brasileiro se comportaram diante da eleição de Lula.
O aumento dos conflitos se dá em parte porque os movimentos sociais viram, na eleição de Lula, uma perspectiva de que houvesse a Reforma Agrária e, assim, aumentaram sua mobilização, principalmente nos primeiros anos do período. Por outro lado, os setores que são contra a Reforma Agrária e a democratização do acesso à terra, temendo que Lula pudesse efetivar esse projeto, partiram para um processo de violência. No primeiro ano do governo Lula, os números de assassinatos no campo voltaram aos patamares dos anos entre 1985 e 1990. E o governo não fez a reforma agrária: regularizou terras de posseiros, criou assentamentos na Amazônia, consagrando a ocupação na fronteira o que contribuiu, de certa forma, para a garantia de mão-de-obra disponível para os projetos que acabaram avançando sobre a floresta. A surpresa foi essa!
IHU On-Line – Qual sua análise do ranking de violência por estado?
Carlos Walter Porto Gonçalves – Nesse ranking, dois estados se destacam: Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Geralmente, os dados da violência colocam o Pará na frente. É claro que o Pará tem níveis muito altos de violência em termos absolutos. Por exemplo, em 2003, tivemos 73 assassinatos no campo, no Brasil, desse total, 32 foram no Pará, ou seja, 42% do total. No entanto, a população que vive no campo, nesse estado, representa 7% de toda a população rural brasileira. Já o Mato Grosso, nesse mesmo ano, teve 9 assassinatos, ou seja, 12,5 do total e, no entanto, tem menos de 1% da população rural do país. Assim, podemos dizer que o Pará tem um índice de violência de seis (42 dividido por sete) e o Mato Grosso de 12,5 (12,5 dividido por um). Em relação ao índice de violência, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul são os dois estados que se destacam nesses 25 anos analisados. Você sabe por quem o Mato Grosso [1] é governado já há algum tempo, e este é o estado que é a menina dos olhos para a expansão do agronegócio. Já Mato Grosso do Sul tem todas as características do avanço da agricultura empresarial e moderna, ou seja, latifúndios de monocultura para exportação.
O interessante é ver que os estados que dominam o ranking são os estados do agronegócio, o que permite mostrar que a violência não é um fenômeno amazônico, mas está muito ligado a agricultura empresarial. Em Roraima, acontece a mesma coisa, a expansão da monocultura empresarial está avançando enormemente e, com isso, a violência vai aumentando contra a população do campo e as comunidades indígenas.
Ao amazonizar a violência, você acaba encobrindo a violência no modelo agrário e agrícola como um todo. Nós temos uma Amazônia expiatória, pois parece que a violência só se dá lá. É violento sim, porque o processo lá da fronteira está associado a um processo violento, como não fazer a Reforma Agrária no país. A violência na Amazônia, portanto, decorre do fato de que não se faz a Reforma Agrária no país, mas sim colonização, que é o contrário da Reforma Agrária.
IHU On-Line – A região Sudeste foi a que apresentou crescimento em praticamente todos os números no ano passado. Por quê?
Carlos Walter Porto Gonçalves – A região Sudeste teve, nos últimos anos, uma expansão significativa de áreas de cana, sobretudo depois do Etanol. O presidente Lula tem certa responsabilidade ao chamar os usineiros de heróis. Eles são heróis porque estão garantindo a balança comercial brasileira em função da exportação do etanol e da soja. Lula apostou nessa agricultura empresarial de exportação como fonte de entrada de recursos no país. Com relação à questão agrária, o governo Lula é totalmente um governo de direita.
IHU On-Line – E no caso da região sul, a que se atribui a violência no campo?
Carlos Walter Porto Gonçalves – No Rio Grande do Sul, há hoje uma espécie de vanguarda do pensamento conservador, tanto no plano do Judiciário quanto no plano do Executivo, que tem tomado atitudes de criminalização. Então, tem sido um estado onde o Judiciário tem respondido com muita parcimônia a presença e as demandas das oligarquias fundiárias
Os números relativos à Reforma Agrária no RS são extremamente surpreendentes. Há, no RS, em torno de cinco milhões de hectares de terras públicas que foram apropriadas indevidamente. O MST tem dados interessantes sobre isso, tanto que quando faz ocupações de terras, utiliza essas informações. É o caso da Cutrale [maior indústria de suco de laranja do mundo], por exemplo. Faz dez anos que o MST vem denunciando que eles utilizam terras públicas, e o governo não toma iniciativa de desapropriar a fim de fazer a Reforma Agrária. Quando ocorreu a invasão, o que fez a mídia? Chamou o MST de invasor e baderneiro. E, por sua vez, o Judiciário não avalia a qualidade jurídica da terra quando um fazendeiro pede reintegração de posse, partindo do pressuposto de que agem de boa fé. Todavia, agindo assim, consagram o juízo de que os movimentos sociais quando ocupam uma terra estão agindo de má fé, num claro exemplo de preconceito de classe contra as populações mais pobres. O RS tem sido, nos últimos anos, pioneiro em relação a essas iniciativas preconceituosas do Judiciário e do Executivo.
Notas:
[1] Blairo Maggi (Partido da República) foi governador do estado de Mato Grosso, eleito para o mandato 2003-2007 e reeleito para o termo 2007-2010. É engenheiro agrônomo, maçom e controlador do Grupo Amaggi, sendo considerado um dos maiores produtores de soja do mundo.
(Ecodebate, IHU On-line, 03/05/2010)