A partir de janeiro deste ano, cada litro de diesel vendido nos postos passou a conter 5% de biodiesel. O consumo de fontes energéticas menos poluentes que os combustíveis fósseis pode ser considerado um bom sinal diante dos riscos relacionados às mudanças climáticas, mas os impactos socioambientais vinculados ao biodiesel também são capazes de surpreender quem imagina ter a culpa reduzida toda vez que enche o tanque do veículo.
De todo o volume de biodiesel produzido no país, cerca de 80% são extraídos a partir da soja. Das 48 usinas de processamento dedicadas especificamente à produção do agrocombustível atualmente em funcionamento, 42 utilizam a soja como matéria-prima. Quando lançado em 2004, o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB) prometia inclusão social de pequenos produtores rurais combinada com a disseminação de fontes alternativas (como a mamona). Mas desde que o país vem produzindo biodiesel em maior escala, o domínio da soja nunca chegou a ser ameaçado.
Além disso, o direcionamento do grão para o setor de geração de energia é cada vez maior. Em 2008, foram consumidos 3,5 milhões de toneladas de soja para a produção de biodiesel, o que representava cerca de 5,8% de toda a safra da época. Em 2010, 8,3 milhões de toneladas devem virar fonte de energia, quantidade que equivale a 12,3% do total produzido. Ou seja, em apenas dois anos, a proporção de soja para biodiesel mais do que dobrou.
"Mais do que o fracasso do programa oficial de inclusão de pequenos produtores de mamona e dendê na cadeia dos agrocombustíveis renováveis", revela o relatório "Os impactos da soja na safra 2009/10", produzido pelo Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis (CMA) da Repórter Brasil, dados como esses indicam "que todos os problemas ambientais, sociais e trabalhistas ligados ao atual modelo de expansão da sojicultura colocam-se como obstáculos aos discursos empresariais e governamentais de que os agrocombustíveis brasileiros são paradigma da chamada ´energia limpa´".
O documento analisa aspectos da produção da cultura em regiões onde está consolidada, como o Mato Grosso, e onde ainda está se expandindo, como o Oeste baiano. Também avalia a relação de usinas de biodiesel com a cadeia produtiva do grão, e as tendências dos critérios de sustentabilidade, apontando alguns dos problemas que ainda são latentes no setor.
Mato Grosso
Maior produtor de soja do país, Mato Grosso abriga 11 usinas de biodiesel em funcionamento. O CMA apurou que o grão adquirido para produção do agrocombustível provém, em parte, de áreas com problemas fundiário e ambientais - grandes fazendas que constam da lista de embargos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e assentamentos embargados pelo órgão por desmatamento.
O relatório também aponta irregularidades no cumprimento das normas do Selo Combustível Social. Assentamentos parcial ou totalmente embargados pelo Ibama, como Mercedes I/II (em Tabaporã), Mercedes 5 (em Ipiranga do Norte), Itanhangá (em Tapurah), Pingo D´Água (em Querência), Nova Cotriguaçu (em Cotriguaçu) e Macife I (em Bom Jesus do Araguaia), por exemplo, fornecem soja para usinas de biodiesel.
De acordo com os assentados que cultivam o grão no assentamento Mercedes I/II, as usinas Fiagril, Coomisa e ADM tem adquirido a produção, mas a maioria dos agricultores afirma não ter recebido assistência técnica, como exige o Selo. Em relação aos contratos de compra e venda , que devem ser avalizados por entidade representativa dos agricultores (sindicatos ou cooperativas), os assentados afirmaram que as usinas fazem pré-financiamentos convencionais que incluem sementes, adubo e agrotóxicos (o que acaba viabilizando a atividade agrícola, uma vez que todas as políticas públicas de incentivo e financiamento estão paralisadas em função do embargo ambiental), mas não há participação da organização de classe no processo.
Apesar de acabar sendo muitas vezes uma opção econômica, o cultivo de soja nos assentamentos é considerado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) como contrário aos objetivos da reforma agrária, em especial o da diversificação da produção de alimentos.
Bahia
A situação também é crítica no Oeste da Bahia, onde o cultivo da soja encontra-se em franco crescimento e já apresenta problemas relativos aos direitos trabalhistas e à legislação ambiental. Dos dez municípios que mais plantam soja no estado, seis são campeões de desmatamento do cerrado entre 2002 e 2008, de acordo com dados do Ministério do Meio Ambiente: Formosa do Rio Preto, São Desidério, Correntina, Jaborandi, Barreiras, e Riachão das Neves.
No que se refere aos direitos trabalhistas, a região apresenta problemas graves. Entre 2003 e 2009, foram registrados 43 casos de propriedades flagradas com trabalhadores em situação análoga à escravidão no Oeste baiano. As autuações ocorreram principalmente em lavouras de algodão, pecuária, carvoaria, soja e milho. Atualmente, a "lista suja" do trabalho escravo conta com duas propriedades do Oeste da Bahia em que houve o flagrante de trabalho escravo na soja, uma delas em Formosa do Rio Preto e a segunda em São Desidério. Além desses dois casos, a "lista suja" inclui mais três propriedades com registros de caso de trabalho escravo no cultivo de soja no Piauí, duas no Tocantins e uma no Mato Grosso do Sul.
No lixão de Barreiras (BA), pólo do agronegócio da região, o CMA pode constatar a situação a que parte das pessoas da região está sujeita. Em seus relatos, trabalhadores demonstram que a superexploração, a coação, o constrangimento, a servidão, e, conseqüentemente, a escravidão, são aspectos comuns. Tanto que, ao comentar sua atual situação, de viver no lixão e obter sua renda da reciclagem dos materiais ali lançados, afirmam estarem em situação melhor hoje do que as enfrentadas anteriormente.
Por fim, o documento avalia as várias tentativas de acordos sobre critérios de sustentabilidade para a soja, apontando que, apesar dos esforços de espaços como as Mesas Redondas da Soja e do Biocombustível Sustentáveis, e da Moratória da Soja, o setor empresarial tem se afastado das discussões. A Abiove, representando as grandes traders, se afastou da Mesa Redonda da Soja, assim como a Aprosoja, representante dos produtores do Mato Grosso. Na Amazônia, apesar da Moratória, cresceu a produção de soja em áreas de desmatamento recente. Resta saber se, diante deste quadro, as empresas concordarão em estender o acordo, cujo prazo vence em julho de 2010.
Leia a íntegra do relatório "Os impactos da soja na safra 2009/10", do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis (CMA)
(Repórter Brasil, 30/04/2010)