A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça afastou nesta terça-feira (27/4), por unanimidade, o dever da indústria do cigarro indenizar fumantes que desenvolveram câncer de pulmão. O relator do recurso, ministro Luís Felipe Salomão, entendeu que não há nexo de causalidade entre o uso contínuo de cigarro e a doença, pois o câncer tem várias outras causas e não é possível determinar que foi exatamente o cigarro que provocou o mal. A 4ª Turma deu provimento ao recurso da Souza Cruz, contra acordão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
O advogado da Souza Cruz, Eduardo Ferrão, alegou que o dever de indenizar “repousa na ocorrência simultânea de três pressupostos, o ato ilícito em função de defeito no produto, a ocorrência de um dano e o nexo de causalidade entre o defeito do produto e o dano”. Disse ainda que a Souza Cruz se submete à regulamentação, divulgando os riscos existentes no hábito de fumar. Além disso, “é público e notório que o cigarro é prejudicial à saúde, ninguém pode afirmar que não sabia que o cigarro é prejudicial”, disse. Segundo Ferrão, no Brasil há 30 milhões de fumantes, o que dá uma idéia do potencial de uma decisão favorável à indenização ao autor da ação. Por outro lado, o advogado lembrou que a empresa é responsável por 240 mil empregos e recolheu R$ 6 bilhões em impostos no ano passado.
O ministro Luis Felipe Salomão esclareceu que tinha processos mais antigos com o mesmo tema, mas preferiu colocar em votação o REsp 1.113.804-RS porque está mais adequado para a Turma enfrentar o mérito. “É o momento mais adequado para a reflexão sobre o tema, porque há inúmeras ações tramitando”, disse Salomão. No Brasil, já foram ajuizadas 633 ações judiciais por fumantes, ex-fumantes e seus familiares contra as principais fabricantes de cigarros no país. Dessas, 400 possuem decisões rejeitando tais pretensões indenizatórias, 304 transitadas em julgado. Por outro lado, 16 desses processos já foram julgados em sentido contrário, ou seja, aprovaram o pedido de indenização. Todas ainda estão pendentes de recurso.
Segundo o diretor do departamento jurídico da Souza Cruz, Antonio Rezende, o primeiro efeito prático que a decisão do STJ vai provocar é a redução da demanda, por diminuir as expectativas de fumantes e ex-fumantes em relação a uma decisão favorável. “Nem existe quantidade tão grande de ações, considerando o número de fumantes e ex-fumantes”, constata.
O advogado classificou o resultado do julgamento no STJ como "natural", já que 99% das decisões, em mais de 15 Tribunais de Justiça, são favoráveis à empresa. Para Antonio Rezende, a decisão do STJ demonstra que a Corte, conhecida como Tribunal da Cidadania, também preserva a segurança jurídica. Além disso, afirma o advogado, os ministros decidiram que o nexo causal não pode ser presumido.
Prescrição
A ação indenizatória foi proposta em 2005, na cidade de Cerro Largo (RS), pela viúva do ex-fumante Vitorino Mattiazzi, que morreu em dezembro de 2001. O ministro Luis Felipe Salomão afastou a prescrição, de 5 anos, já que a ação foi proposta pela família em data posterior à morte. Foi o único ponto em que não houve unanimidade. O ministro João Otávio de Noronha disse que preferia votar o mérito, mas ressalvou que, se não fosse por isso, acataria a prescrição. Para Noronha, que presidiu a sessão de julgamento, “não nasce uma nova pretensão pela morte, não muda o prazo prescricional uma vez que o dano se caracterizou no momento em que foi identificada a doença, quando o próprio paciente poderia ajuizar a ação por dano moral”.
CDC X Constituição
A família alegou que a Souza Cruz incentivou o uso do cigarro mediante propaganda enganosa. Afirmou que a empresa fez propaganda aliciante durante décadas, omitindo os efeitos nocivos do cigarro e oferecendo um produto com alto poder viciante, o que impediu o fumante de abandonar o uso do produto, após várias tentativas. As alegações se basearam no Código de Defesa do Consumidor, afirmando que o cigarro é produto defeituoso (artigo 12) e potencialmente nocivo à saúde (artigo 9º), cuja comercialização é proibida (artigo 10).
O ministro Salomão afastou a aplicação do CDC, explicando que a Constituição Federal “chancela a comercialização do cigarro (artigo 220, parágrafo 4º) e impõe restrições apenas à publicidade do produto”. Para o ministro, “não é possível afirmar que o cigarro é produto defeituoso”, pois o que o CDC prediz é sobre “a segurança do produto ou serviço, não podendo dizer respeito a uma capacidade própria do produto de gerar dano”. O ministro explicou ainda que o defeito do produto permite a troca, o que não é admissível no caso do cigarro.
“A Constituição relaciona, além do tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos e medicamentos na categoria de produtos de periculosidade inerentes, cujo risco de dano decorre de seu próprio uso”, disse. Assim, o ministro equiparou o risco do tabaco provocar diversas enfermidades ao risco do álcool de provocar também várias doenças e acidentes de trânsito. “Não há cigarro que não cause risco à saúde, assim como não há bebida alcoólica que não embriaga e possa causar danos aos usuários e a terceiros, bem como não há medicamentos fármacos ou agrotóxicos que não tenha poder de causar intoxicação”.
Considerando que o risco é inerente ao produto, o ministro Salomão afirmou que “somente haverá responsabilização em caso de vício na informação ou falta de informação”. Para o relator, o TJ-RS se equivocou ao analisar o caso à luz da legislação consumerista. Salomão considerou que “os fatos supostamente ilícitos imputados à indústria tabagista teria ocorrido a partir da década de 50, alcançando períodos anteriores ao CDC, não sendo possível simplesmente aplicar ao caso os princípios e valores hoje consagrados pelo ordenamento jurídico”. E ainda, que “não havia dever jurídico da indústria do fumo informar os usuários acerca do risco do tabaco”.
Nexo de causalidade
De acordo com os autos, o falecido fumou por quase 50 anos e desenvolveu câncer de pulmão. Segundo o ministro relator, foi somente após a década de 90 que se emergiu a consciência de que fumar faz mal. Mas, é um equívoco afirmar que a indústria do cigarro criou a formação do perfil social do fumante. “O hábito de fumar não foi criado pela indústria e surgiu muito antes das décadas de 40 e 50”, disse. Salomão disse ainda que “o homem é protagonista de sua vida e faz suas opções com livre arbítrio”.
Luis Felipe Salomão afastou o nexo de causalidade entre o uso de cigarro e o fato do fumante desenvolver câncer. Para ele, o câncer tem várias causas, acometendo pessoas que não fumam, inclusive crianças e não há como comprovar que foi exatamente o cigarro que provocou a doença, o que afasta o dever de indenizar.
(Por Eurico Batista, Conjur, 27/04/2010)