“Uma questão nova que está se colocando para as comunidades Kaiowá Guarani, que nos últimos 20 anos foram pensados como mão de obra, especialmente para as usinas de cana de açúcar e álcool”, comenta o historiador e lutador da causa indígena Antonio Brand. O fim anunciado desse espaço de trabalho, similar à escravidão, seja pela acelerada mecanização de todo o processo da cana, desde o plantio à colheita, seja pela pressão ambiental, contra as queimadas dos canaviais para a colheita manual, seja pelo aumento do lucro ( cada máquina substitui de 80 a 100 trabalhadores e reduz os custos em aproximadamente 20%), terá um impacto forte sobre as comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul, onde ainda trabalham nas usinas cerca de 10 mil pessoas.
Cadê a saída?
Se índio não trabalha (é tangido aos piores trabalhos), se busca renda fora de sua terra (não tem terra, só confinamentos), se não tem anseios de consumo (só trabalha para viver e não acumula) se gosta de trabalhar em grupo e é submisso ( além disso eficaz e portanto preferido no trabalho da cana), então parece que o problema da mecanização do processo de produção do etanol e açúcar, com a dispensa de milhares de trabalhadores indígenas e não indígenas, soa como um falso problema. Pior é que não é. É real e candente. Mais do que isso. É complexo e urgente e parece não ter horizonte. Ou melhor, exige vontade política, conhecimento histórico e antropológico, e principalmente espaço físico, terra, território. Fora disso parece não ter saída. Na melhor das hipóteses se chega a paliativos inócuos que levarão a dar vivas à escravidão e genocídio.
Diante desse dilema, a Comissão de Fiscalização do Trabalho do Mato Grosso do Sul, resolveu encarar esse desafio no intuito de contribuir com o debate sobre o tema, com os atingidos e setores da sociedade empenhados a buscar saídas. Programou cinco seminários de debate nos centros onde se registra maior número de indígenas envolvidos no trabalho das usinas: Dourados, Caarapó, Amambaí, Aquidauna e Miranda. Os debates na região dos Kaiowá Guarani acabam de ser realizados. O objetivo é desencadear o debate, recolher as sugestões, produzir um subsídio (texto) que servirá para aprofundar a discussão em torno da temática e sugerir mecanismos de enfrentar e superar mais essa premente situação.
A solução começa pela terra
Rosalino, um dos cabeças (organizador e responsável por grupos indígenas para trabalho nas usinas), disse não estar preocupado com a mecanização, mas alertou “quero dizer aos senhores que essa situação vai trazer dor de cabeça para vocês por que os índios vão fazer pressão sobre as terras, para resolver o problema das terras indígenas”. Maucir, da organização do encontro, concordou que não restam dúvidas que a questão de fundo é da territorialidade, ou seja, sem resolver a questão das terras indígenas, não haverá solução efetiva. Porém ressaltou que podem e devem ser dados outros passos na perspectiva de trabalho e geração de renda, dentro e fora dos atuais confinamentos. O representante do Cimi também alertou para a complexidade do problema que só terá efetivos passos de superação na medida em que for articulado de forma ampla com mudanças estruturais e de mentalidade.
Várias lideranças indígenas mostraram que, apesar da questão de escolarização poder contribuir com a melhoria de acesso a postos de trabalho e geração de renda, fora e dentro das terras indígenas, a absolutização dessa saída é enganosa. Relataram vários casos em que, apesar de formação até de nível superior, vários indígenas não conseguiram trabalho por causa da discriminação por serem indígenas.
Um dos participantes asseverou que seria uma insanidade continuarmos preparando índios para trabalhar na cana. A solução não vem apenas da aldeia, nem apenas de fora da terra indígena. Hoje está mais do que evidente de que as saídas terão que ser múltiplas e amplas, articuladas e com a efetiva participação dos povos e comunidades indígenas.
Se a continuidade no trabalho da cana fosse uma condição de melhoria de vida das pessoas ou das aldeias, os povos indígenas do nordeste deviam viver num paraíso, pois vários deles há mais de 400 anos estão trabalhando nos canaviais. Será preciso cobrar responsabilidades sociais daqueles que enriqueceram e enriquecem a custa da destruição da terra indígena e da mão de obra dos mesmos. Por isso na França, grupos de solidariedade aos povos indígenas tem feito uma ampla campanha exigindo medidas efetivas da empresa de usinas da Dreyfus.
Enquanto isso os povos indígenas da região continuarão lutando pelo trabalho menos escravizante, enquanto esse existir. Exigir a urgente identificação e reconhecimento das terras indígenas no Mato Grosso do Sul será a melhor contribuição para a superação da violência, dependência, e situação desumana de trabalho e sobrevivência das populações indígenas da região.
(Por Egon Heck, Cimi Regional MS, EcoDebate, 22/04/2010)