Há quantas décadas os cientistas advertem que não se deve desmatar encostas e topos de morros nem ocupá-los com construções, porque se corre o risco de deslizamentos e mortes? Há quantas décadas a legislação proíbe essa ocupação? Há quanto tempo a ciência mostra os riscos de ocupar a planície de inundação natural de rios, que periodicamente ali produzem enchentes mais fortes, com vítimas e perdas materiais, ainda mais se canalizados, retificados, obstruídos por barragens? Não são conhecidos há muito tempo os riscos de impermeabilizar todo o solo das cidades com asfalto e não deixar espaço para a infiltração de água – agravando o risco de inundações? Há quantas décadas o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) alerta para a maior frequência e o agravamento dos chamados “eventos extremos” do clima, principalmente chuvas intensas em curto espaço de tempo?
Esse texto pode parecer escrito agora, após as últimas tragédias no Rio de Janeiro, em Niterói, São Paulo, Angra dos Reis, etc. provocadas por chuvas intensas. Mas foi publicado pelo autor destas linhas nesta mesma página no dia 19 de dezembro de 2008, após os dramas que as chuvas provocaram em Santa Catarina, onde chegaram a cair mais de 850 milímetros de água em 36 horas. Nessas últimas semanas nem choveu tanto – mais de 100 milímetros, em São Paulo; e 288 milímetros, no Rio de Janeiro. Mas foi o suficiente para provocar “o caos” no Rio e em Niterói. Centenas de mortos, milhares de desalojados ou desabrigados e a constatação de que há dezenas de milhares de casas em áreas de risco nas duas cidades.
Não é o caso de discutir mais uma vez se “eventos extremos” como esses são ou não produto da intensificação do efeito estufa por ações humanas. Não há nenhuma dúvida de que, seja qual for a razão, os últimos 10 anos estão entre os 12 mais quentes da história do planeta. Ainda que se deixem de lado esses ângulos da questão, o Rio de Janeiro tem uma história de eventos extremos dessa natureza desde 1966, pelo menos – e os governantes sabem disso. Da mesma forma, em Niterói a prefeitura estava informada, havia seis anos, por um estudo do Instituto de Geociência da Universidade Federal Fluminense, dos riscos com a ocupação desordenada de topos de morros e encostas. Em 2007 a mesma instituição alertou para 142 pontos de risco em 11 regiões – cinco das quais agora fortemente atingidas pelos deslizamentos. E uma delas era exatamente o Morro do Bumba, onde aconteceu o pior de todos. Ali se permitiu a ocupação, por dezenas de famílias, de uma área que durante 15 anos recebeu o lixo de Niterói e São Gonçalo. Uma das hipóteses é a de que o recente deslizamento tenha sido agravado por uma explosão de gás metano ali acumulado pela decomposição do lixo.
Não é possível, portanto, fazer de conta que as administrações não sabiam dos riscos. E, pior, nenhum protesto se ouviu pelo fato de as verbas destinadas pela Secretaria Nacional de Defesa Civil ao Rio de Janeiro e São Paulo haverem sido redirigidas para outros Estados, principalmente a Bahia, onde o ex-ministro da Integração Nacional – a quem está subordinada a secretaria – é candidato a governador. Em 2008 e 2009, a Bahia recebeu 64,6% das verbas, ante 0,9% do Rio de Janeiro e 3% de outros oito Estados. De 2004 a 2009, a Bahia ficou com R$ 307,9 milhões, ante R$ 15,5 milhões do Rio de Janeiro.
Também não é possível esquecer a alarmante penúria brasileira em matéria de adaptação às mudanças climáticas. Mesmo quando o poder discute a questão climática no País, em geral centra a atenção quase exclusivamente na necessidade de “mitigar” as emissões de poluentes – sem tratar da urgentíssima necessidade de “adaptação”, para a qual a Convenção do Clima chama sempre a atenção. Seja qual for a razão, os eventos extremos vêm se intensificando há décadas e é preciso adaptar o País a essa realidade. Isso inclui ter uma política em todos os níveis da administração que inclua instituições científicas equipadas para advertir com mais tempo sobre a aproximação dos eventos perigosos. Uma política que leve à revisão dos padrões de construção em todos os lugares e setores (rodovias, pontes, edifícios). Uma legislação que impeça a impermeabilização do solo – e fiscalização para que seja cumprida. Desocupação das áreas de risco. Programas de devolução dos rios a seu curso primitivo – eliminando barragens, retificações, redução do canal. E a criação, em cada lugar, de instituições de defesa civil.
Exemplo de conhecimento a ser traduzido em práticas preventivas: estudo de cientistas da área do clima na Universidade de São Paulo para a Agenda do Verde e do Meio Ambiente da capital paulista mostra que a diferença de temperatura entre as áreas do Município ainda ocupadas por vegetação nativa (Serra do Mar e Cantareira, principalmente) e áreas da cidade de alta ocupação industrial e trânsito intenso (como a Mooca) chega a seis graus Celsius, e isso tem consequências fortes na distribuição espacial e temporal das chuvas. Essas áreas mais quentes formam as chamadas “ilhas de calor”, que atraem chuvas intensas. Com isso, chove mais nas áreas onde os altos volumes de água são um problema e menos nas áreas de nascentes e reservatórios. Da mesma forma, com o calor, chove mais nas áreas urbanas de segunda-feira a sexta-feira – quando a água é mais problemática – do que nos fins de semana, quando diminui o calor e há menos movimentação de pessoas.
Há alguns estudos. Faltam políticas adequadas. E caminhos na sociedade para exigir dos governantes as atitudes necessárias. Sem esquecer a questão da comunicação: os eventos dramáticos têm causas que se acumulam ao longo de anos, décadas; não acontecem do dia para a noite. É função da comunicação acompanhar essa evolução, denunciá-la e pedir providências. Não basta fazer o “jornalismo de espetáculo” só no momento do drama.
(O Estado de S.Paulo, EcoDebate, 19/04/2010)