No tempo das grandes descobertas, os navegadores ancoravam as caravelas a alguns quilômetros da foz do Rio São Francisco para se abastecer de água doce. O rio-mar tinha força bastante para avançar sobre o oceano. Hoje a situação se inverte: o Atlântico penetra no Velho Chico e saliniza suas águas. Peixes de água salgada são encontrados a dezenas de quilômetros no leito do rio. O pior é que a fonte de abastecimento de outrora se transformou em fator de contaminação de mão dupla.
Esse relato feito pelo juiz federal e professor Carlos Rebelo Júnior, na II Conferência Internacional sobre Sinergias Ambientais entre as Águas Continentais e Marítimas, realizado na semana passada em Buenos Aires, despertou forte reação de cientistas e ambientalistas, que concluíram pela necessidade de urgente reversão do processo de destruição do rio da unidade brasileira.
Mostrou o magistrado que, nos últimos 40 anos, o Velho Chico perdeu 40% do volume de água e que a cada ano são lançadas 18 milhões de toneladas de areia e terra no seu leito, infestado por esgotos domésticos e industriais e todo tipo de dejetos. Centenas de municípios ao longo dos quase 3 mil quilômetros de extensão, desde a Serra da Canastra, em Minas Gerais, até a Praia de Piaçabuçu, em Alagoas, participam desse atentado à natureza.
Entre os exemplos de alterações significativas desse cenário, Rebelo apontou:
1. Embaixo da ponte entre Alagoas e Sergipe, em Propriá, sobre a BR-101, o rio tinha uma profundidade de 45 a 55 metros, mas hoje os bancos de areia são vistos ao longo do leito, por entre as águas que passam por pequenos canais;
2. Os 208 quilômetros abaixo da Hidrelétrica de Xingó estão tomados por imensos areais;
3. A atividade de pesca diminui bastante e, paradoxalmente, é possível pescar robalo, de água salgada, 145 quilômetros acima da foz; e
4. A cunha salina avança destruindo localidades como a ilha de Cabeço e o povoado de Costinha.
Tudo isso ocorre, apesar de o Brasil ser um dos subscritores dos diversos tratados e convenções internacionais que impõem obrigações de prevenção, redução e controle da contaminação do meio marinho de qualquer fonte, entre os quais o Convênio de Direito do Mar, de 1982, o Convênio sobre Usos dos Rios Internacionais para Fins Distintos da Navegação, de 1997, e o Protocolo de Aruba, de 1999. Sobre eles discorre em profundidade a professora Griselda Capaldo, da Universidade de Buenos Aires, destacando a importância de uma ação conjunta internacional como meio de proporcionar o tratamento e assimilação natural de resíduos de origem antrópica, a proteção contra as tormentas, a provisão de alimentos, de matérias-primas, a recreação e o gozo estético, as oportunidades de emprego e a regulação do clima no planeta Terra.
Tais tratados e convenções não encontram efetividade, ao contrário de outros tantos, de natureza comercial, nos quais as nações ricas impõem regras que privilegiam fortemente o capital financeiro, os investimentos especulativos, em detrimento da produção de bens, inclusive alimentos, não obstante a pobreza e a miséria que afetam bilhões de seres humanos em todos os continentes, especialmente na África, na Ásia e na América do Sul.
Aí se dá um retrocesso de séculos, à época em que as caravelas singravam os mares sob o império do sistema de privilégios. Tudo para umas poucas nações, à época, Inglaterra, Portugal e Espanha, e ferro para a periferia. É o feudalismo financeiro que agora se impõe.
Lázaro Guimarães é magistrado e professor universitário (jlaz{at}uol.com.br)
(Correio Braziliense, EcoDebate, 14/04/2010)