A tragédia de Niterói é apenas mais uma que não deveria ter ocorrido. Mas ocorreu e outras ocorrerão, diante da omissão da autoridade pública no país. Infelizmente, é apenas mais uma – e grande – de uma lista que pode crescer e com número ainda maior de vítimas.Primeiro de tudo é preciso fazer distinções. Essa tragédia aconteceria sem chuva, em algum momento. Ela era provavelmente iminente e foi apenas precipitada pelas chuvas. Não é, exatamente, uma tragédia humana decorrente de uma anomalia climática: chuvas mais intensas e volumosas que a média. É uma tragédia política. E uma tragédia ambiental.
É resultado de absurdo descuido ambiental e sanitário. Lixões a céu aberto são uma anomalia política. Simplesmente não deveriam existir mais. Lixão regulamentado por prefeituras é lixão. Igualzinho os lixões clandestinos. Eles contaminam o lençol freático, criam riscos graves à saúde pública e emitem metano, poderoso gás de efeito estufa. A única forma adequada de dispor o lixo é em aterros sanitários, depois da separação de todo material reutilizável, reciclável e de alta toxicidade. Aterros tecnicamente bem feitos, com adequada impermeabilização e isolamento e respeito aos limites de carga e segurança.
Seja lixão aterrado, seja aterro sanitário técnico, não é para construir habitações nesse terreno. Ele não tem consistência estrutural. É cediço. Vai ceder com o peso, mais cedo ou mais tarde. Ele já passa por um processo de acomodação permanente por causa de alterações físico-químicas na massa de lixo. Nesses casos, não pode ser proibido proibir.
O tratamento adequado do lixo cria valor e reduz risco. O mal tratamento do lixo, mata. Não é preciso esperar a aprovação da lei de resíduos sólidos e a implementação do plano nacional de resíduos sólidos. Acabar com lixão é decisão que se impõe por razões morais, sanitárias, humanitárias, ambientais, climáticas e econômicas. O metano pode ser usado para gerar eletricidade e esse é um projeto que se enquadra no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, podendo gerar créditos de carbono. Já há um funcionando assim em São Paulo e outro no Rio de Janeiro. Podem atender ao consumo de eletricidade de perto de 300 mil pessoas cada um.
Para se ter uma idéia do tamanho do problema, o IBGE informa, em seus indicadores de desenvolvimento sustentável, que em 2000, o Brasil coletava 230 mil toneladas de lixo comercial e residencial. Destes, 59,5% iam para lixões. Vários levantamentos, em locais diferentes do país, indicam que menos de 20%, em média, do lixo reutilizável e reciclável, é, de fato, reutilizado e reciclado. A maior parte é inutilizada ao ser enterrada nos lixões a céu aberto. E não imaginem que a situação nos estados mais ricos é melhor. Isso não tem a ver com a riqueza dos estados, tem a ver com a pobreza da política. O índice de tratamento inadequado de lixo em São Paulo, em 2000, era de 57,6% e o do Rio de Janeiro, de 54,1%, muito pouco abaixo da média. Em Minas Gerais, era de 62%, acima da média nacional. Santa Catarina tinha a melhor marca, de 46,3%, ainda assim, escandalosamente alta. O Rio Grande do Sul ficava um pouco abaixo da média, com 50,4% e o Paraná, ligeiramente acima, com 61%. Em resumo, um vício nacional. Isso há 10 anos. Deve ter piorado: certamente aumentou a tonelagem de lixo recolhida e não aumentou proporcionalmente a parcela que é adequadamente disposta.
Precisa apenas bom senso e sentido de responsabilidade social para saber que não se pode construir moradias, ainda mais com processos construtivos precários, em cima de lixões ou em encostas. O que aconteceu no morro do Bumba, em Niterói, é apenas inaceitável. Era um monte de lixo, um lixão desativado em 1986, sobre o qual, como conta Míriam Leitão, em seu blog, jogaram uma fina camada de terra, para espantar os urubus.
O prefeito, Jorge Silveira (PDT-RJ), em entrevista ao Bom Dia Rio, disse que, no seu primeiro mandato, viu começar a ocupação do Bumba. Ele sabia que tinha sido um lixão, mas havia sido informado que era velho, estava consolidado e que lhe tinham dito que não havia problema. Era óbvio que tinha problema.
Vejam só. Foi complacente com uma ocupação irregular, de um terreno sob o qual havia um lixão. E aceitou a informação de que não havia risco. Certamente não consultou os engenheiros e urbanistas da Universidade Federal Fluminense, que lhe teriam informado que havia risco, sim. No seu segundo mandato, já havia alertas e diagnósticos sobre o risco daquela ocupação. Ela já havia aumentado muito e ele continuou sendo complacente e displicente. No terceiro mandato, assistiu à tragédia humana pela qual foi, em boa parte, responsável. Disse que, nessas situações sempre se procura um culpado e que ele, então aceita, como prefeito ser responsabilizado. Não é porque a imprensa e a opinião pública procuram culpados que ele é responsável. É responsável pelas decisões que tomou e pelas que não tomou.
Perguntado porque não providenciou a relocalização daquela população, o prefeito foi vago. Mas dava para perceber duas idéias: as pessoas não querem sair daqueles lugares e não dá para forçar.
Não querem porque não lhes é oferecida alternativa: moradia digna com serviços urbanos e transporte. Obrigação mínima de qualquer autoridade pública. O governo federal, todos os governos estaduais e as prefeituras das maiores cidades prometem habitação popular nas campanhas e constroem casas populares – menos do que prometem – mas sempre constroem. Mas essas casas são distribuídas por critérios políticos. Não porque fazem parte de uma política urbana estratégica, de desabitar áreas de risco e de eliminar moradias precárias. Essas populações, que são as verdadeiramente necessitadas, nunca são atendidas. Não são vítimas de sua própria teimosia. Não são vítimas do ambiente, nem do clima. São vítimas da má política. Eu vi, na televisão, vários depoimentos sobre pessoas que morreram e que estavam se preparando para deixar as casas, porque sabiam do risco. Houve, até, o caso de uma senhora, que deixou sua casa no topo do morro, por causa do risco de desabamento e alugou outra ao pé do morro. Morreu soterrada. Não teve orientação, nem alternativa.
Os problemas urbanos e ambientais do Brasil todos têm solução conhecida. As áreas de risco estão identificadas. Os erros de gestão já foram apontados reiteradamente, pelos especialistas e pela imprensa. Os riscos futuros mais evidentes, relativos à mudança climática, já foram definidos. Não há razão para não agir.
Há muito clientelismo na origem das omissões das autoridades. No Brasil, a política urbana sempre esteve a cargo de políticos clientelistas, em todos os níveis. Sempre fez parte do loteamento político. Por isso o Geddel Vieira Lima era o ministro da área e pode, segundo o Tribunal de Contas da União enviar 64% das verbas para prevenção e preparação para desastres para seu estado, a Bahia. Elas devem pavimentar sua campanha para governador. Se ele tiver chance de vitória, talvez a alocação tenha sido premonitória.
O presidente Lula chamou de irresponsáveis aqueles que disseram ter havido essa concentração indevida de recursos na Bahia e que o Rio só levou 0,9% dessa parte do orçamento. Irresponsável é não verificar, não punir e ainda justificar o uso clientelista de um recurso que já é pouco e se torna cada vez mais estratégico. O TCU foi mais que responsável, cumpriu sua obrigação constitucional. A imprensa que divulgou seu relatório fez o que tem que fazer, tornar público o que se quer esconder.
Há, também, demagogia em parte do movimento social que desconsidera os riscos e defende a permanência da população em áreas inadequadas, como se fosse um direito. Não é. Quando há risco, a ocupação deve ser vedada e isso é da obrigação democrática dos governantes. A população tem direito a boas políticas, não à maquilagem ou a formalização do irregular e do informal, desconsiderando o risco e o bem estar coletivo.
As honrosas e ocasionais exceções de ações urbanas de qualidade e de medidas preventivas que existem, em uma ou outra cidade, servem de ilustração para o que pode ser feito.
Parece complicado, mas é simples. Complicado é aceitar essa degradação absoluta de nossa cultura política, a perda completa da noção de gestão planejada, o abandono total das rotinas de manutenção de equipamentos urbanos críticos e a imprevidência e complacência generalizada das autoridades. O Brasil vive hoje uma extensa patologia política, esta sim muito difícil de curar. Não é bom fingir que nossa democracia vai bem. Ela vai muito mal e isso é um risco para a democracia e para o bem estar coletivo.
(Por Sérgio Abranches, Envolverde, 11/04/2010)